Addendum a O liberalismo rawlsiano: um novo fundamento para a tolerância liberal?
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Nota 1 O «utilitarismo em acto» versus o «utilitarismo como regra».[1]
O «utilitarismo em acto» coloca-se no ponto de vista de considerar que a rectidão ou a injustiça de uma acção deve julgar-se pelas consequências, boas ou más, da acção em si. O «utilitarismo como regra» assume o mesmo ponto de vista, mas julga antes as consequências da regra de todos deverem realizar tal acção em iguais circunstâncias. Se encararmos a extensão lógica da regra, do domínio do actual ou vigente para o do possível, obtemos o princípio de Kant: «Age apenas segundo a máxima que queiras também seja uma regra universal», modificado por restrição, no querer do sujeito moral, da influência de um sentimento de benevolência: que queiras, como pessoa humana e benevolente, também seja
Pode censurar-se a preferência por regras, no âmbito do próprio utilitarismo e David Lyons[2] argumenta mesmo que o «utilitarismo como regra» (Ur) decai (collapses) no «utilitarismo em acto» (Ua):
Hipótese: Uma excepção à regra R produz as consequências melhores possíveis.
Tese: Um sistema adequado de Ur é por extensão equivalente a Ua.
Demonstração: (1) Face à situação hipotética, é evidente que R deve modificar-se para permitir a excepção; (2) Assim, temos uma regra nova na forma: segue R, excepto nas circunstâncias C. (3) Ou seja, o que quer que faça um adepto de Ua a quebrar uma regra, conduz um adepto de Ur a modificar a regra; (4) Logo, um adequado Ur é equivalente ao Ua., c.q.d.
No limite, porém, face ao número indefinido de tipos de contingência, a regra última de «utilitarismo em acto» que subsistirá é maximiza o benefício provável. Como princípio de escolha e decisão social e política, tal regra rapidamente apelará para a prudência de evitar o risco do maior dano expectável e mais sofisticadamente conduzirá a uma estratégia probabilística de maximin em que se comparem as utilidades esperadas isto é, as utilidades ponderadas pelas probabilidade de cada resultado com as vagas de acção política disponíveis.
Um só fundamento da tolerância liberal: a moral abrangente da liberdade e dignidade do homem
Da ideia suprema do bem, do belo e do justo ao dispositivo abstracto de um consenso social sobre uma ideia reguladora da Justiça medeia a diferença civilizacional que separa uma crença moral que une os homens em torno do apelo metafísico de confiança no logos, no pathos e no ethos, ao arranjo aceite de uma coexistência pacífica entre culturas distintas que, por razoáveis, se toleram, ao não se unificarem, renderem entre si, ou transformarem-se numa totalidade nova.
A esboçada preferência de Scheffler por uma doutrina liberal abrangente, face ao esquema jurídico-político de Rawls, não será porventura, uma atitude política mais democrática do que o dirigismo judicial da razão pública de Rawls? É possível que sim, mas daí não deriva, de per se, uma menor valia desta doutrina.
Com efeito, sempre a conflitualidade social e política acompanhará a luta pelos recursos naturais e meios de produção das sociedades humanas, e sucessivas serão as regras e as leis que os homens acordarão entre si para a distribuição do produto da actividade económica, mas sempre, em qualquer tempo e lugar, será digna de reflexão e apreço toda a doutrina que, como a de Rawls, se proponha constitucionalmente garantir a defesa da liberdade dos cidadãos contra a opressão de grupo, irrazoável e injusta, seja ele uma etnia, uma classe social, um cartel de interesses, uma seita religiosa, um partido político ou o próprio estado não legitimado pelos cidadãos.
Construído na prudente equidistância de qualquer concepção abrangente da vida e do mundo, o liberalismo político pretende ser uma garantia da liberdade individual na pluralidade das culturas, constrangendo todas as crenças universais a inter-comunicarem sob argumentos razoáveis, intolerância excluída, com vista a firmar, por boas e partilhadas razões, um acordo constitucional de consenso político, que estrategicamente ganhe, assim, a consistência de módulo de união e entendimento multi-cultural entre os cidadãos de um só Estado.
Inquiro da formação de um tal poder e da viabilidade da sua conservação. O primeiro ponto tem a resposta empírica no curso da história política da Europa seiscentista[1] e, justamente, a corrente emigratória da Europa para a América do Norte e a ulterior independência dos Estados Unidos da América, com o apoio da França e reconhecimento final da Inglaterra, deu origem à primeira Constituição Política que acolhe, de raiz, os ideais do liberalismo. Em França, a Revolução de 1789, proclama a República e aprova os princípios constitucionais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade que rapidamente se estenderam ao resto da Europa.
Dois séculos volvidos, os Estados Unidos são potência hegemónica no mundo, albergando, nas suas fronteiras, múltiplas etnias e tradições; a Europa atravessa o difícil processo de construção política de uma União de povos e estados soberanos, distintos por línguas, história e cultura independentes. É neste laboratório, ao vivo e em larga escala, que os princípios supremos da tolerância liberal estão submetidos a uma verdadeira prova de fogo.
A indiferença das massas populares aos processos constitucionais em curso e a distância que separa os governantes dos governados os primeiros recrutados em selecção de influência em largos e estabilizados aparelhos partidários; os segundos chamados ao voto em campanhas eleitorais regulares em que os partidos opostos lutam por disputar o centro do espectro de opções políticas, por nele se concentrar o voto dos eleitores, parece ter transferido a tolerância para um estatuto comunicação ritual na superestrutura política da sociedade, mantendo as massas alheadas das questões políticas estratégicas por um espesso «véu de ignorância».
Alain Touraine, num colóquio recente em Lisboa promovido pelo Institut Franco-Portugais, constatava «Ninguém ama a Europa
» e, pergunto eu, como vamos nós uni-la com éticas fraccionadas por percursos histórico-culturais de tão profunda independência, sem a experiência de um bem comum que funde uma moral universal e abrangente e habite o discurso político?
Não será por certo condição suficiente de unidade o acordo num sistema equitativo de repartição que, de resto, tem um enorme caminho a percorrer para nivelar oportunidades e produtividade, antes de poder ser (sen)tido como justo e impõe-se enfrentar os desafios sérios[2] que se colocam objectivamente à humanidade, e de cuja solução[3] depende a liberdade e dignidade do homem.
O liberalismo político, embora enriqueça, com um partilhado sentido de justiça, um factual pluralismo cultural em coexistência pacífica de modus vivendi, terá de progredir mais fundo na concepção do bem comum, de forma a unir[4] os cidadãos e os povos numa moral básica e universal de verdadeira solidariedade com vista à liberdade e dignidade do homem, em todas as comunidades, nações ou estados à face da Terra.
[1] Cujo ponto culminante podemos fixar em 1689-90, em que John Locke publicou os seus dois Treatises on Government, nos anos subsequentes à Revolução Inglesa que instituiu na Inglaterra o poder parlamentar da burguesia no quadro de uma monarquia constitucional: Man is free and in this condition all men are equale all men have their inalienable rights: the right to Life; the right to Liberty; the right to Property; the right to Rebel against unjust rulers & laws.
[2] Listo: o desarmamento nuclear; a questão energética e o petróleo; o comércio livre e o desemprego; a reforma do well-fare state; a agricultura transgénica e a destruição da diversidade genética; a pecuária intensiva e a vulnerabilidade da saúde pública; a degradação da biosfera; a poluição das terras, rios, e mares; a destruição da floresta e da biodiversidade; a demografia e a fome no mundo; o narco-tráfego e o branqueamento de capitais; a globalização do investimento internacional com a lógica errática da exploração e lucro imediato; o tráfico de armas, a corrupção e o terrorismo internacional.
[3] Sem o que
quase conviremos na nostálgica reflexão de Molina, por a pátria da saudade a todos acolher na dor da ausência daquilo que já foi presente, patenteando o vazio da dignidade perdida.
[4] Não por um qualquer fascismo internacionalista, mas justamente ao modo construtivista de Rawls, defendendo um módulo de bem que progressivamente aceite, vá com tolerância ordenando, numa escala de dignidade humana, a pluralidade de valores das diferentes comunidades.
Bibliografia
Samuel Scheffler, The appeal of Political Liberalism, in revista Ethics 105 (Outubro 1994): pp 4 22
John Rawls, O Liberalismo Político, Lisboa, Editorial Presença, 1ª edição, 1997
J.J.C. Smart & Bernard Williams, Utilitarianism For & Against, Cambridge University Press, 1973,
Uma lei liberal dos povos
A fechar o seu artigo, Scheffler interroga-se da possibilidade de o liberalismo político, em vigor nas democracias ocidentais, estar em condições, ou não, de dar apoio moral ao desenvolvimento de instituições liberais em sociedades sem qualquer tradição democrática significativa. Rawls é muito reservado quanto a um tal prospecto, e defende que uma sociedade não liberal pode, apesar disso, ser bem ordenada e justa. No trabalho que Rawls desenvolve de criação de uma lei liberal dos povos não se requer que as sociedades não-liberais se tornem liberais. Rawls faz aliás notar que há diferença nas razões pelas quais as instituições liberais se enraízam na sociedade pela primeira vez, e as justificações para que tais instituições existam e se disponibilizem em estádios posteriores de evolução.
Contudo, Scheffler sustenta que, se doutrinas abrangentes razoáveis, que se desenvolvam em condições de liberdade, convergirem todas para princípios liberais, então o que pode ser dito àqueles que buscam fomentar instituições liberais nessas sociedades, é que essas instituições são o esteio mais duradoiro para suportar e encorajar o livre exercício da razão humana, entre as múltiplas visões doutrinárias que nela concorram. Porém, como é evidente, isto só pode sustentar-se de facto se o consenso de sobreposição for ele próprio uma possibilidade realística nas modernas democracias pluralistas. E isto conduz-nos de volta às questões levantadas precedentemente: pluralismo de valores? Modus vivendi em coexistência pacífica? Sem uma resposta convincente a tais questões a dúvida persistirá, especialmente entre os que defenderiam o liberalismo na base de uma doutrina moral abrangente, em que a posição de Rawls esvazia os recursos morais do liberalismo sem conseguir, em troca, alargar a atracção justificativa e a adesão aos seus princípios.
O construtivismo da concepção de justiça
Scheffler mantém o desconforto desta dissonância entre a restrição das regras da razão pública e o livre debate político na sociedade, mesmo ao apreciar o carácter apelativo da concepção de justiça na sua trama construtivista: os princípios emergem a partir das ideias de sociedade e de pessoa por via do dispositivo da posição original.
Uma concepção construtivista não afirma nem nega que os seus princípios sejam verdadeiros. O construtivismo político que é parte do liberalismo político opera sem o conceito de verdade (dispensa-a), e antes se apoia na asserção do que seja razoável para o regime constitucional. Rawls esclarece que a vantagem de quedar-se dentro do razoável é que não pode haver senão uma doutrina abrangente verdadeira, embora muitas possam ser razoáveis.
Uma vez aceite o facto do pluralismo razoável como uma condição permanente da cultura pública em condições de liberdade institucional, a noção de razoabilidade é mais adequada como peça de base da justificação pública para um regime constitucional democrático do que a ideia de verdade moral. Fixar uma concepção política como verdadeira e como tal a única apropriada como base da razão pública seria restritivo, mesmo sectário, e alimentaria a divisão política.[1]
É claro que esta argumentação puramente construtivista que afirma, não que os princípios são verdadeiros mas que a sua origem nas ideias implícitas na cultura política pública os habilita como uma base razoável de justificação pública torna possível aos cidadãos concordar com tais princípios, mesmo discordando do status metafísico que eles por si impliquem.[2]
Mas, insiste Scheffler , se os cidadãos são supostos aceitar que a ideia de razoabilidade é uma ideia mais apropriada para a justificação pública
do que a ideia da verdade moral, então Rawls arrisca-se a desperdiçar os ganhos obtidos [na adesão dos cidadãos aos princípios de justiça] ao insistir num grau parcial, mas significativo, de uniformidade dos cidadãos no modo de perspectivarem os princípios de justiça.
[1] LP, III, §8, p 138.
[2] Sendo, para cada corpo, opaca a experiência alheia, e fundando-se nos corpos da experiência os sistemas de racionalidade, não será de surpreender que «a razão não nos une», justamente uma tese que o pluralismo defende. Porém, tal não inibe o acontecimento ontológico de uma dedução comum numa racionalidade plural: com efeito, não é por se deduzir validamente de uma premissa verdadeira, que uma conclusão também o é, mas sim porque ambas são verdadeiras é que se nos torna possível deduzir uma da outra. Daí que esta experiência comum de uma verdade singular partilhada vá necessariamente produzir efeitos revisionistas nas doutrinas abrangentes de cada corpo de experiência . Este é um ponto em que Rawls concede alguma razão a Berlin quando admite que «o espectro pleno de valores é demasiado extenso para caber em qualquer mundo social. Vide LP, V, §6, p 196, nota 32.
A ideia da razão pública
No liberalismo político, os cidadãos são supostos conduzir as discussões fundamentais no enquadramento do que cada um perspectiva como uma concepção política de justiça baseada em valores que os outros possam razoavelmente subscrever e cada um, de boa fé, esteja preparado para defender tal concepção assim compreendida.[1]
Mas, este resultado supõe que as partes, na posição original, adoptem, para além dos dois princípios de justiça acordados consensualmente , parâmetros de orientação e critérios de decisão do que haja de considerar-se relevante para aplicação dos princípios de justiça e identificação das leis e políticas que melhor as cumpram.
O ideal da razão pública impõe-se no debate político em fórum público: não só aos dirigentes públicos como aos cidadãos enquanto envolvidos na advocacia política em fóruns públicos, incluindo membros de partidos políticos, candidatos em campanha e seus grupos de apoio: na discussão das bases essenciais da constituição e questões de justiça básica, não podemos apelar para doutrinas abrangentes, religiosas ou filosóficas, ou seja para aquilo que, seja a título pessoal ou como membros de associações, entendemos ser a verdade total.[2]
Esta é uma restrição notável que enfraquece a vivacidade do debate político no seio da sociedade e pode empobrecer a própria cultura política pública. Sensível a esta dificuldade, Rawls tolera o apelo a razões abrangentes se daí advier o fortalecimento do ideal da razão pública em si o caso da campanha abolicionista de Martin Luther King, Jr é um exemplo que invoca.[3]
Porém, muitos outros exemplos podem apresentar-se e é altamente questionável julgar tais campanhas ou como necessárias ao fortalecimento da razão pública ou liminarmente injustificadas.
Sobre este ponto Scheffler sublinha que, em qualquer caso, a multiplicidade de exemplos de movimentos de opinião pública emergentes de doutrinas abrangentes[4] em nada contribui para realçar a plausibilidade de um consenso de sobreposição convergente não apenas para os dois princípios de justiça, mas também para as linhas directrizes (guidelines) da razão pública, como Rawls as descreve. Ora, pode muito bem verificar-se consenso sobre os primeiros e até, de modo consequente, o encorajamento a respeitar os limites da razão pública, sem que estes sejam uma imposição imprescindível.
[1] LP, VI, §4, p 221.
[2] LP, VI, §4, p 219-20.
[3] LP, VI, §8, p 241-2.
[4] Refira-se, paradigmaticamente, a questão ambiental, a engenharia genética (animal e vegetal) ou seja o próprio estatuto do mundo natural e a nossa relação apropriada com ele. Rawls admite que «estas questões podem eventualmente tornar-se elementos constitucionais essenciais ou de justiça básica, desde que os nossos deveres e obrigações relativamente às gerações futuras e a outras sociedades estejam envolvidas.» Ver LP, VI, §7, p 238, nota 35.
O pluralismo das ideias do Bem
Em defensiva prudente, Rawls lembra que o que está em causa é uma concepção moral para um objecto específico: a estrutura básica de um regime constitucional democrático, ou seja, relativa às principais instituições da vida política e social, não se reportando, assim, à globalidade da vida.
Reconhece contudo que tal concepção terá de possuir o tipo de conteúdo que historicamente associamos ao liberalismo: ( ) afirmar certos direitos e liberdades básicos, atribuir-lhes uma determinada prioridade
[1] Rawls identifica cinco ideias do bem incluídas na justiça como equidade: a) a ideia do bem como racionalidade; b) a ideia de bens primários; c) a ideia de concepções abrangentes admissíveis do bem; d) a ideia das virtudes políticas; e) a ideia do bem de uma sociedade bem-ordenada.
Ao formularem racionalmente os seus planos de vida, os cidadãos orientam os seus esforços e a afectação dos seus recursos (de inteligência e força, de tempo e energia) tomando em consideração as suas expectativas razoáveis quanto às necessidades e requisitos que os acompanharão no futuro, nas várias fases da vida. Assim, a vida e a realização dos objectivos e necessidades básicos serão considerados como um bem, e a racionalidade como um princípio básico da organização política e social.
Neste sentido, o bem como racionalidade permite identificar um índex viável de bens primários que servirá de base ao entendimento político do que deve publicamente reconhecer-se como necessidades dos cidadãos. São listados cinco grandes grupos de bens: a) direitos e liberdades básicos (também listados); b) liberdade de circulação e livre escolha da ocupação num quadro de oportunidades plurais; c) poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e económicas da estrutura básica; d) rendimento e riqueza; e) as bases sociais da dignidade e respeito próprio.
Ainda que este índex porventura não se aproxime do que os cidadãos, em função das suas perspectivas abrangentes, possam mais desejar e valorar para si próprios, espera-se de cada um que adapte a sua concepção de bem à sua esperada parcela equitativa de bens primários. A única restrição aos planos de vida é que sejam compatíveis com os princípios públicos de justiça[2] diz Rawls, que reconhece igualmente não ser a justiça como equidade processualmente neutra: é seguramente impossível que a estrutura básica de um regime constitucional justo não influencie e não produza efeitos sobre a selecção das doutrinas abrangentes que persistirão cativando aderentes ao longo do tempo, e conclui, temos de aceitar os factos de bom senso da sociologia política.[3]
Embora sem intuitos perfeccionistas, a justiça como equidade inclui a consideração de certas virtudes políticas a cooperação social equitativa, a civilidade e a tolerância, a razoabilidade, o sentido de justiça e Rawls reconhece que não existe qualquer mundo social que não exclua certos modos de vida que traduzem de maneiras específicas certos valores fundamentais. A natureza da cultura e das instituições de qualquer mundo social revela-se demasiado incompatível com o universalismo[4]
A quinta e última ideia do bem utilizada na justiça como equidade é a ideia do bem da sociedade política bem-ordenada. Embora a concepção de unidade social seja excluída pelo facto do pluralismo razoável, e o ideal de uma comunidade política, unificada por uma doutrina abrangente, abandonado, a sociedade política é, não obstante, um bem para os cidadãos porque lhes assegura o bem da justiça e as bases sociais da dignidade própria e respeito mútuo[5]
[1] LP, V, §1, p 177.
[2] LP, V, §1, p 189.
[3] LP, V, §1, p 192.
[4] Ver LP, V, §1, p 196. Neste ponto Rawls subscreve por inteiro as ideias defendidas por Berlin, e admite que «no domínio dos valores como oposto ao mundo dos factos, nem todas as verdades podem caber em um só mundo social.»
[5] Designadamente - permita-se-me o aplauso explícito ao reconhecer a igual identidade dos seus cidadãos antes, durante e depois de terem perfilhado ou aderido a qualquer concepção ou associação religiosa ou filosófica, garantindo-lhes, assim, a liberdade mais íntima de consciência, livre expressão do pensamento e livre associação. Lembre-se o caso espectacular de Salman Rushdie e o aparato de segurança que mobilizou, durante anos, no Ocidente.
A prioridade do Justo sobre a ideia do Bem
Suspendamos assim, o fio do raciocínio de Scheffler, que nos guia nesta digressão sumária pelo liberalismo político , e atentemos no carácter construtivista do modelo rawlsiano notando as relações políticas que estabelece com as concepções do bem, do justo e da verdade.
Já vimos[1] que é possível distinguir três pontos de vista na ideia da posição original: o das partes, o dos cidadãos e o do construtor do modelo, i.é., daquele que pretende ver justificada, por aceitação racional inter-subjectiva, uma concepção de justiça como equidade entendida como concepção política de justiça.
O enfoque dos pontos de vista das partes e dos cidadãos é o da concepção de justiça como equidade. Distinguem-se entre si, porém, pela diferença de as concepções de uma sociedade bem-ordenada e de cidadãos livres e iguais poderem ter realização efectiva no mundo social, enquanto as partes são apenas elementos da posição original, representantes racionais que especificam os justos termos da cooperação social através do acordo alcançado quanto ao princípio de justiça. As partes na posição original são assim uma maneira de modelar a ideia do racional versus o razoável, na esteira do construtivismo moral de Kant, concedendo a precedência ao razoável sobre o racional, do que resulta a prioridade do Justo.
Receando mal-entendidos, Rawls apressa-se a reconhecer que o justo e o bem são complementares e qualquer concepção de justiça deve combinar ambos de modo preciso.[2] Mas, reconhece pertinente a questão: «Como pode a justiça da equidade sequer fazer uso de ideias de bem sem se pronunciar em modos incompatíveis com o liberalismo político acerca da verdade desta ou daquela doutrina abrangente?» (itálico nosso)
O véu da ignorância cobre as partes na posição original
Como dissemos, a posição original deve ser entendida como um dispositivo de representação. Qualquer acordo alcançado pelas partes envolvidas deve ser encarado como hipotético e não histórico[1], diz Rawls. Tal acordo, como qualquer outro para ser válido, deve ser firmado sob condições apropriadas: situar equitativamente as pessoas livres e iguais, sem favorecer qualquer resultado mais vantajoso para alguns do que para os outros; exclusão de ameaças do exercício da força e de coacção e a fraude. Mas, para além disso, e dado que a ideia deste tipo de acordo vai compreender a própria configuração de fundo constituída pelas instituições da estrutura básica da sociedade, haverá que situá-la de um ponto de vista que justamente a subtraia dessa envolvente configuração de fundo em que se realizam os contratos da vida quotidiana na sociedade. A posição original sob «o véu da ignorância» é justamente esse ponto de vista.
Assim, as partes, consideradas como representativas de cidadãos livres e iguais, situar-se-ão simetricamente entre si, sob condições equitativas, para argumentar com razoabilidade os seus pontos de vista, a que o véu da ignorância as condiciona, pelas restrições de conhecimento sobre a posição social específica de cada um bem como daqueles que representam , a doutrina particular que perfilham, seja religiosa, filosófica ou moral, a concepção de bem que preferem, a raça ou etnia, o sexo e os diferentes atributos natos de força e inteligência. É desta forma que é atribuída às partes a tarefa de estabelecer um acordo sujeito a condições que limitam de forma apropriada aquilo que podem utilizar e promover como boas razões ou razões adequadas.[2]
O interesse da posição original, enquanto mecanismo de representação, é o de proporcionar uma reflexão pública, impondo às partes restrições razoáveis às razões convocáveis de modo a favorecer uma concepção política de justiça em relação a qualquer outra.
Não surpreenderá assim, não a eventual diminuição de adesão ao consenso que Scheffler parece recear , mas quiçá a frustração emocional dos cidadãos nele representados, por não verem acolhidas as suas visões do mundo.
Mas justamente isso nos transportaria (ou fixaria) num ponto chave do modelo de Rawls para a inteligibilidade da sua doutrina e compreensão da sua viabilidade tópica num sistema de filosofia política que, na tradição de Maquiavel e Spinoza, inquira a formação e avalie a possibilidade de conservação do poder político neste novo sistema de tolerância liberal[3].
[1] LP, I, §4, p 50.
[2] Poder-se-ia imaginar testar a ideia da posição original (p.o.) sob o véu da ignorância, com a busca de um consenso sobre a concepção política de justiça num fórum da Web com as características do modelo rawlsiano. Puro equívoco, esclareceria o nosso autor: há a distinguir três pontos de vista na ideia da p.o.: o das partes na p.o.; o dos cidadãos numa sociedade bem ordenada; e o nosso o seu [leitor] e o meu que acompanhamos a elaboração da justiça como equidade e a entendemos e examinamos [sublinhado nosso] como uma concepção política de justiça. A p.o. é desenvolvida por si e por mim ao construirmos a justiça como equidade, e assim cabe-nos decidir da natureza das partes: elas são meramente as criaturas artificiais que habitam o nosso dispositivo de representação Ver LP, I, §4, p 54.
[3] O que extravasa o propósito desta sumária abordagem do «liberalismo político» e nos remeteria forçosamente para uma avaliação de instituições internacionais e da política externa norte-americana e europeia.
O consenso de sobreposição
Um consenso de sobreposição estável tem de ser um consenso de cidadãos e não de teorias. Ora tal consenso adopta uma concepção política de justiça, que é configurada como independente de qualquer doutrina moral abrangente. Para Scheffler, este requisito de independência indicia duas questões que suscitam perplexidade:
por quem deve ser configurada a concepção como independente para que possa autenticar-se como concepção política?
a atitude esperada dos participantes no consenso de sobreposição é a de encararem certos princípios de justiça bem como certas ideias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de uma sociedade democrática, das quais «considerem» que aqueles princípios se podem derivar, independentemente de qualquer doutrina abrangente, «própria ou alheia (à referida cultura política pública)»[1]
A primeira dificuldade pode ter uma solução mais esclarecida atribuindo maior autoridade aos argumentos de carácter político que defendam as várias concepções de justiça do que às concepções em si mesmas. Com este critério, o problema acaba, a meu ver, por subsumir-se no âmbito da segunda perplexidade de Scheffler, que vê nesta exigência um acréscimo de dificuldade em conseguir realisticamente um consenso; na verdade, requer-se não só o acordo a um conjunto específico de princípios de justiça, mas igualmente a certas meta-teses sobre o estatuto de tais princípios: ceteris paribus, é expectável que o consenso abranja menos pessoas.
[1] Os termos entre «» expressam a nossa interpretação da perplexidade (puzzle) de Scheffler. Sublinhados nossos
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