A caverna de Platão. Comparação da caverna
com outros modos modernos de simular
o que Platão quis ensinar.
«Por onde a razão, como uma brisa, nos levar, por aí devemos ir.» (Platão)
«Os que vagueiam pelos tribunais e por lugares assim
(...) arriscam-se (...) a acabarem por ser educados
como escravos, em comparação aos homens livres.»
(Teet.,172d)
9 (----->) Conclusões sobre qual a tese realista com menores desvantagens
Ao caracterizarmos o ser pelas qualificações (a) e (b) apresentadas no ponto 1., mantemos oculta uma conjunção implícita, qual seja a de o objecto assim definido ser compatível com algum observador possível (z) do objecto existente (x) o qual percepciona (O) pela propriedade (P) : (a*) $y x = y Ù ◊ $z Ozx; (b*) $P Px Ù ◊ $z OzxP.
Não pretende esta conjunção introduzir qualquer forma de relativismo na concepção do ser, mas apenas excluir do real, «a coisa em si» kantiana que embora «existente em si», ao ser incompatível com qualquer observador, não é real, nem realidade para ninguém.
Também não se pretende, com esta restrição, retirar à ontologia a sua independência metafísica face à temática de que se ocupa a epistemologia; antes, o objectivo é distinguir o objecto inteligível e o seu cosmos do caos ininteligível, pura multiplicidade sem forma ou propriedade, o «existente em si».
De algum modo, a caracterização (c), ao ancorar-se numa linguagem, apela para a conjunção do observador possível que reivindicamos. Porém, o flirt em que se compraz, de um nominalismo de predicados, não é confiável para subscrever uma radical autonomia do ser face ao observador, cuja estatuto é o de mera possibilidade e compatibilidade com os objectos do mundo e não forçosamente uma existência efectiva.
Isto posto, é nosso entendimento que as propriedades dos objectos existem previamente à própria existência destes. Os objectos, na sua individuação e identidade, existem; logo, são possíveis. Esta condição, a meu ver, devem-na ao facto de serem desprovidos de qualquer substância sui generis e reflectirem tão só o tropo ou feixe de qualidades que os individuam.
O problema das propriedades universais estarem localizadas fora do espaço-tempo, levanta uma questão que obscurece notavelmente a sua própria solução. Na verdade, nada do que ocorre no universo está fora do espaço-tempo, entendido este como tropismo ou a história do próprio universo, e toda a ontologia dualista é profundamente inconveniente. Nenhum objecto é inteligível se desprovido de atributos que o individuem, os quais são primitivos ao objecto assim possibilitado. Ser real é dispor de tais propriedades e individuadamente ascender à existência. A expressão fora do espaço-tempo não pode, a meu ver, ser entendida como exterior ao universo, mas sim como existente em abstracto, num reino ontológico irredutível ao mundo físico ou aos estados mentais dos observadores inteligentes (os quais, em termos de possibilidade, não se restringem ao homo sapiens). No caso humano, o chamado 3º reino, onde residem os objectos abstractos, é, naturalmente, acessível por cognição tal como a bio-sociologia e a história humana das civilizações a explicam. Isto não obsta a que admitamos como possível que outros seres inteligentes possam aceder a idêntico ou superior conhecimento abstracto de como o mundo é. O 3º reino, como o conhecemos, é frequentado segundo a capacidade e aptidões racionais próprias de cada forma de vida, viabilizada em cada cultura e civilização.
No plano realista, a liberdade conceptual de inventar objectos abstractos, numa operatória simbólica prévia e subtraída com sobriedade aos constrangimentos empíricos é, na minha opinião, uma condição de criatividade e investigação, de experiência de pensamento, qualitativamente superior às limitações do realismo aristotélico, e como tal, preferível.
Contudo, a argumentação contra o RI, não invalida por si só as teses do Realismo Aristotélico. Este afirma, na sua versão standard, que Toda a propriedade universal de ordem 1 tem pelo menos um particular concreto como exemplo em pelo menos uma ocasião, cf. p 7 acima.
Ora, na investigação da ciência, pode ser necessário reconhecer propriedades e relações de objectos abstractos. Este procedimento é assim inconsistente com o RA, em que todas as propriedades estão ancoradas no mundo físico. A única forma de contornar esta objecção parece ser a de reduzir os objectos abstractos a outros tipos de entidades, ao modo nominalista. Mas, já o dissemos, o preço a pagar é o de tornar mais complexa a linguagem. A matemática, disciplina que opera em supremo grau com relações, p.e., a soma de ... com --- , lida com abstracta, sem ter qualquer localização no mundo físico.
Acresce que, propriedades e relações não exemplificadas em nenhuma ocasião, podem ser indispensáveis do ponto de vista da explicação causal, científica. ----> Aliás, como mostrou Hume e Quine[1], o nexo causal entre dois acontecimentos, não sendo nem uma necessidade lógica, nem uma relação observável intrinsecamente, é sempre uma relação abstracta que obtém satisfação na conjunção constante observada do par ordenado causa-efeito.
Também, na sua versão standard, o RA não exclui universais de ordem superior (>1), ainda que os restrinja à ordem 2 ou superior, com condições especificadas de modo a serem exemplificados por universais de ordem inferior e, como tal, estarem ancorados no mundo físico; p.e., peso, cor, forma, universais de ordem 2, exemplificados por universais de ordem 1, p.e., 1 kg, vermelho, círculo.
Ora, os particulares concretos localizados no espaço-tempo apenas exemplificam propriedades determinadas (p.e., vermelho) e não propriedades determináveis (cor), pelo que os universais de ordem 2 não são localizáveis no e-t.
[1] Refere Dagfinn Follesdal no seu artigo Indeterminacy and Mental States (1988) a propósito do sentido (meaning) das expressões linguísticas: «As Quine has pointed out, the situation ( ) is parallel to the situation of empirical science, where scientific theory is underdetermined by the evidence.This is simply a general feature of the hypothetico-deductive method: as long as our evidence does not pertain directly to the individual hypothesis, but only to their observational consequences, the hypothesis are underdetermined by the evidence.(sublinhados nossos)
8 Argumentos pró e contra o realismo aristotélico
Como vimos acima, a tese aristotélica pode ser verdadeira mesmo que porventura se demonstre a falsidade do RI. Assim, os argumentos contra o RA têm de ter as respectivas teses por alvo. Não obstante, a eventual demonstração de invalidade do RI, retira ao RA um dos seus atractivos mais apelativo: a sua compatibilidade com uma explicação naturalista da realidade.
O Realismo Imanente defende que todos os universais têm de algum modo uma localização no mundo físico, o mundo dos particulares concretos que os exemplificam, cf. p 4 acima. Especificamente, os universais estarão localizados nos sítios onde existam os particulares concretos que os exemplificam. Como tal, são partes, estão nos particulares que os exemplificam. Ora, as partes espaciais de um particular, tal como o próprio particular, é um objecto irrepetível. Nessa qualidade, como pode, então, estar, ser parte, de muitos outros particulares, numericamente distintos? É impossível. Logo, os universais não podem nem ser partes espaciais, nem partes espaciais do que quer que seja; tem de ser outro o modo de os universais estarem presentes no mundo físico dos particulares concretos.
No mundo físico, no caso de objectos materiais, uma e a mesma coisa não pode estar integralmente presente em sítios diferentes ao mesmo tempo; e, também, duas coisas numericamente distintas não podem ocupar, ou estar presentes, no mesmo sítio ao mesmo tempo. Ora, se aceitarmos que estes princípios são uma condição necessária a satisfazer para que algo tenha uma localização espácio-temporal, então concluiremos que os universais não são localizáveis no e-t.
A maneira de evitar a conclusão deste argumento argumento das partes é dizer que os universais estão presentes nos seus exemplos, e daí, localizados onde os seus exemplos se situem ou ocorram no mundo físico. Para tanto, argumentar-se-á que os universais podem considerar-se como partes dos particulares que os exemplificam, numa forma de composição que não é mereológica. Assim como um particular concreto, uma pessoa, p.e., é constituída de partes espaciais ou temporais, também o é por diversos universais, as qualidades que nela estão presentes, único modo de os universais estarem situados nos particulares.
No limite, a defesa dos universais perante a dificuldade da imanência seria resistir e abandonar o idioma da localização o que prejudicaria a explicação do naturalismo.
Aliás, e este é um argumento modal para propriedades, ser é ser possível; e ser possível é ter possivelmente exemplos; ora, qualquer propriedade que seja possivelmente exemplificada existe e pode não ter exemplos de facto; p.e., viajar mais depressa do que a luz. O idioma ter (T) uma propriedade ascende à existência pela simples possibilidade de ter exemplos: ◊ $x x T l y P y ® Existe l y P y ou seja, se é possível P ter exemplos, então P existe. Em matemática, por exemplo, a consistência é um critério de existência. Contudo, o caminho inverso não é válido: da possibilidade não se infere o ser.
Há também um argumento modal que afirma serem os universais existentes necessários; não só existem como não poderiam não ter existido; existem em todos os mundos possíveis ou situações contrafactuais i.é., qualquer maneira completa de como as coisas poderiam ter sido, mas não são. O argumento diz: mesmo que tudo mude, os universais não mudam.
Assim, a existência de universais, em qualquer mundo possível, não depende da existência. nesse mundo, de exemplos desses universais; p.e., a espécie-cavalo existe num mundo possível sem cavalos; ou seja, há universais não-exemplificados
É claro que pode censurar-se o excessivo deste papel dos universais que apenas são chamados a explicar a concordância de atributos, que mostre a razão da semelhança do um-em-muitos, e quase vai além do próprio do Realismo que é tão só afirmar que as semelhanças são objectivas.
Um argumento contra a premissa deste argumento modal os universais são existentes necessários é contra-exemplificar que há propriedades que existem contingentemente, do género já cima referido; p.e., {Sócrates} o conjunto cujo único elemento é Sócrates. Ora, num mundo possível como poderia não ter havido Sócrates, poderia não haver o conjunto composto pela unidade singular Sócrates. Logo, nem todos os universais seriam existentes necessários.
----> A isto contrapomos que o feixe de propriedades exemplificado em Sócrates, esse é um universal necessário para a possibilidade de Sócrates.
Ainda um argumento a favor do RP é o da perfeição. Nenhuma figura ou forma ou qualquer facto empírico sendo a expressão perfeita das propriedades que exprimem, os universais seriam necessários porque só com eles os exemplares podem ser explicados. ----> Contudo, poderá replicar-se que pelo menos em alguns casos haverá particulares perfeitos. É bem possível: o próprio Platão, o primeiro filósofo que de algum modo abordou a questão de estética na cultura ocidental, admitia que o belo sensível era uma expressão directa do Bem Supremo no mundo das sombras dos sentidos.
Há também a possibilidade de elaborar outras entidades, que não universais, que mostrem ser capazes de servir adequadamente como correlatos extra-linguísticos de predicados, pelo que poderiam constituir uma melhor explicação, p.e., classes. -----> A contra-réplica será, porventura, que os universais são os melhores candidatos não só para a explicação como para a fluência da linguagem.
Há ainda nominalistas que argumentam serem dispensáveis os correlatos extra-linguísticos para predicados, por estes, só por si, servirem na qualificação do valor de verdade das frases. Sustentam que um predicado monádico, Fa , é verdadeiro se o predicado F se aplica ao objecto nomeado pelo nome a e é falso, se F não se lhe aplica. Porém, o que é que é aí, um predicado? Um tipo ou um exemplar (token)? Naturalmente, um exemplar não um particular não é predicável. Logo, é um tipo. Mas, um tipo (type), na melhor das hipóteses, para o nominalismo, é uma classe, um objecto abstracto. E uma classe que vai ter de incluir todos os tokens da frase proferidos no passado, no presente e no futuro, como até os que nunca irão ser proferidos, mas poderiam sê-lo. Ou seja as possibilia têm de estar na classe, também. Mais simples: ----> hipostasiar o universal como correlato extra-linguístico.
Vejamos agora alguns argumentos a favor do realismo platónico. O argumento semântico sustenta que qualquer predicado monádico ou termo geral dotado de significado tem de ser associado com um universal monádico como seu correlato extra-linguísitco. Ora, há predicados monádicos dotados de significado que não são verdadeiros de nada ou têm extensões nulas; p.e., unicórnio. Logo, há universais monádicos não-exemplificados.
O argumento é importante porque numa frase bem formada, p.e., Sócrates │é sábio o predicado monádico simples do termo singular (sujeito Sócrates) tem de estar associado a algo fora da linguagem: o correlato extra-linguístico é necessário para que a frase seja verdadeira ou falsa. A pessoa Sócrates não é simplesmente nomeada: é também descrita pelo universal Sabedoria, que é o seu correlato extra-linguístico.
Igualmente no caso de predicados diádicos, algo tem de ser nomeado pelo verbo; p.e., Platão admira Sócrates, o verbo nomeia a <relação de admirar>: a frase é verdadeira se os indivíduos nomeados estiverem naquela relação e naquela ordem do acto de admirar.
Há quem dispute a premissa maior do argumento semântico, invocando que nem todos os termos gerais ou predicados monádicos têm de ter um universal como seu correlato extra-linguístico, tal como também sucede com os termos singulares que podem não nomear o que quer que seja. Porém, se é verdade que a cada palavra não corresponde forçosamente uma coisa [por ela nomeada] o actual rei de França do exemplo de Russell já é discutível que não tenha de haver correlatos extra-linguísticos para predicados.
----> Exibir-se-á rebuscadamente um contra-exemplo à premissa na proposição do tipo Sócrates é idêntico a si mesmo, cujo predicado não seria um universal. Mas, justamente, sendo qualquer particular concreto um tropo de propriedades, a identidade afirma-se pelo correlato que se predica.
7 Argumentos pró e contra o realismo platónico
Sendo o RT implicado pela tese mais forte do RP, todo o argumento que negue aquele compromete o RP, e habilita a tese do RA que lhe é contraditória.
Ora, vimos já que o realismo transcendente exclui a localização de qualquer universal no mundo físico, ou seja no mundo dos particulares concretos que o exemplificam, no caso em que haja tal exemplificação. Universais e particulares concretos ocupam assim domínios distintos e fechados causalmente. Os universais existem no chamado 3º reino uma expressão cunhada por Frege o qual se distingue quer do mundo físico quer do mundo das entidades mentais imagens, representações, ideias, etc. O 3º reino é o mundo das entidades abstractas que não estão nem no espaço-tempo, nem nas mentes. Ora, sendo este domínio estanque torna-se obscura a relação de apreensão dos universais pela mente bem como a própria relação de exemplificação dos universais pelos particulares concretos do mundo físico. Igualmente fica muito comprometida a eventual aspiração naturalista de um só mundo, o físico.
Há também quem repute a tese do RP inconsistente com a existência de algumas propriedades internas aos objectos que as têm, posto entenderem que ter uma propriedade é estar em relação com algo externo, justamente um universal transcendente; p.e., um gato ser um mamífero. -----> A meu ver, este argumento não procede porque, embora as propriedades intrínsecas de um objecto sejam aquelas que ele tem em virtude da sua natureza, e das quais depende a sua existência e identidade, tal não obsta que as mesmas lhes sejam atribuídas constitutivamente por outros particulares concretos, numa cadeia finita causal cuja lógica de replicação é justamente a fórmula universal (sequência de procedimentos) que preside ao arranjo constitutivo do objecto.
De resto, qualquer particular é um feixe de propriedades, um tropo, de cuja actividade depende para existir e ao qual é redutível.
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