Sexta-feira, 5 de Dezembro de 2003
Jorge Luís Borges

«(...) O tempo é um problema para nós, um  tremendo e exigente problema,
porventura o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança.

Lemos no Timeu que o tempo é uma imagem móvel da eternidade;
e isso é apenas um registo que a ninguém distrai da convicção de
que a eternidade é uma substância feita com a eternidade do tempo.

(...) É impossível aqui uma discussão prolixa do sistema platónico,
mas não certas advertências de intenção propedêutica.

Para nós, a última e firme realidade das coisas é a matéria — os electrões giratórios
que percorrem distâncias estelares na solidão dos átomos;
para os capazes de platonizar é a espécie, a forma. (...)
Vamos formulá-la [a tese platónica] assim:


«Os indivíduos e as coisas existem enquanto participam da espécie
que os inclui, que é a sua realidade permanente.»

(...) Schopenhauer, o apaixonado e lúcido Schopenhauer, dá uma razão:
a pura actualidade em que vivem os animais ( ...)
E acrescenta logo, não sem um sorriso:

«Quem me ouvir assegurar que o gato cinzento que está a brincar no pátio
é o mesmo que brincava e fazia travessuras há quinhentos anos, pensará de mim
o que quiser, mas loucura mais estranha é imaginar que fundamentalmente é outro.»

E a seguir: «Destino e vida de leões requer a leonidade que, considerada no tempo,
é um leão imortal que se mantém por meio da infinita reposição dos indivíduos,
cuja geração e cuja morte formam o pulso desta imperecível figura.» (...)

Presumo que a eterna Leonidade pode ser aprovada pelo meu leitor,
que sentirá um alívio majestoso perante esse único Leão,
multiplicado nos espelhos do tempo. (...);


formas universais muito mais árduas nos propõe Platão.

Por exemplo, a Mesidade, ou Mesa Inteligível que está nos céus:
arquétipo quadrúpede que perseguem, condenados ao devaneio e à frustração,
todos os marceneiros do mundo.

(Não posso negá-la completamente: sem uma mesa ideal,
nunca poderíamos ter chegado a mesas concretas.)

Por exemplo, a Triangularidade: eminente polígono de três lados
que não está no espaço e que não quer rebaixar-se à condição de
equilátero, escaleno ou isósceles.
(Também não o repudio; é o dos manuais de geometria.)

Por exemplo: a Necessidade, a Razão, a Preterição, a Relação, a Consideração,
o Tamanho, a Ordem, a Lentidão, a Posição, a Declaração, a Desordem.

Destas comodidades do pensamento elevadas a formas já não sei o que julgar;
(...) Já me esquecia de outro arquétipo que os compreende a todos e os exalta:
a Eternidade, cuja fragmenta cópia é o tempo.


Ignoro se o meu leitor precisa de argumentos para descrer da doutrina platónica.
Posso fornecer-lhe muitos: um, a incompatível agregação de termos genéricos e
de termos abstractos que coabitam sans gêne na dotação do mundo arquétipo;
outro, a reserva do seu inventor sobre o procedimento que usam as coisas
para participar nas formas universais; outro, a conjectura de que esses
mesmos arquétipos assépticos padecem de mistura e variedade.
Não são irresolúveis: são tão confusos como as criaturas do tempo.
Fabricados à imagem das criaturas, repetem essas próprias anomalias
que pretendem resolver. A Leonidade, digamos, como prescindiria
da Soberba e da Rubidez, da Jubidade e da Garridade?

Para esta pergunta não há resposta nem pode haver:
não esperemos do termo leonidade uma virtude
muito superior à que tem esta palavra sem o sufixo.(Vide Nota* )


(...)Temos até aqui, na sua ordem cronológica, a história geral da eternidade.
Das eternidades melhor dizendo, visto que o desejo humano
sonhou dois sonhos sucessivos e hostis com esse nome:

um, o realista,
que anseia com estranho amor os quietos arquétipos das criaturas;

outro, nominalista,  que nega a verdade dos arquétipos e pretende
congregar num segundo os pormenores do universo.

Aquele baseia-se no realismo, doutrina tão afastada do nosso ser
que descreio de todas as interpretações, inclusivamente da minha;

este no que determina o seu conteúdo, o nominalismo,
que afirma a verdade dos indivíduos e o convencional dos géneros.

Agora, semelhantes ao espontâneo e palerma prosista da comédia,
todos fazemos nominalismo sans le savoir: é como uma premissa
geral do nosso pensamento, um axioma adquirido.
Daí a inutilidade de comentá-lo


(Nota*): Não quero despedir-me do platonismo ( )
sem comunicar esta observação com a esperança
de que a prossigam e justifiquem:

«O genérico pode ser mais intenso que o concreto.»
( ) O genérico (o repetido nome, o tipo, a pátria, o destino admirável que lhe atribui)
tem prioridade sobre os aspectos individuais, «que se toleram graças ao anterior».

O exemplo extremo, o de quem se apaixona pelo que ouve dizer,
é muito comum nas literaturas persa e árabe.

Ouvir a descrição de uma rainha — os cabelos semelhantes às noites
da separação e da emigração, mas o rosto como o dia da delícia,
os peitos como esferas de marfim que dão luz às luas,
o andar que envergonha os antílopes e
provoca o desepero dos salgueiros,
as avultadas ancas que a impedem de se manter de pé,
os pés estreitos como a ponta de uma lança — e
apaixonar-se por ela até à palidez e à morte
é um dos temas tradicionais em As Mil Uma Noites. ...)

(JL Borges, in História da Eternidade, p. 365-380;  ‘A doutrina dos ciclos’, p. 399-406; e ‘O tempo circular’, 47-410; in Obras Completas, Vol. I, Círculo de Leitores, 1998)

 


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publicado por vbm às 19:50
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