Sábado, 17 de Julho de 2004
Davidson # 14

Ao desistir da dependência no conceito de uma realidade por interpretar, algo fora de quaisquer esquemas e da ciência, nós não renunciamos à noção de verdade objectiva – bem ao contrário. Dado o dogma do dualismo do esquema e realidade, obtemos o relativismo conceptual, e a verdade relativa a um esquema. Sem o dogma, esta espécie de relatividade desaparece com ele. Claro que a verdade das frases se mantém relativa à linguagem, mas esta é a máxima objectividade possível. Ao desistir do dualismo esquema-mundo, nós não desistimos do mundo, mas restabelecemos o contacto não mediado com os objectos familiares cujo comportamento bizarro torna as nossas frases e opiniões verdadeiras ou falsas.

 

                              FIM

 

 

 


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Quinta-feira, 15 de Julho de 2004
Davidson # 13

Voltamo-nos agora para a abordagem mais modesta: o caso de um insucesso parcial, e já não total, de tradução. Isto introduz a possibilidade de produzir variações e contrastes nos esquemas conceptuais, inteligíveis por referência à parte comum.

[Omito esta parte do ensaio de Davidson. O passo de demonstração segue o mesmo método: parte da premissa de uma teoria de interpretação ou tradução parcial, com conceitos, sentido das expressões e crenças não partilhadas para concluir que o que pode dar qualquer espécie de sentido ao desacordo possível depende inteiramente nalgum fundamento em que há acordo.]

Temos assim de concluir, penso, que a tentativa de dar um sentido firme à ideia de relativismo conceptual, e à de esquemas conceptuais, não se sai melhor no caso de falha parcial de tradução do que no de insucesso total da mesma.

Mas seria um erro sumariar que tenhamos mostrado que a comunicação é possível entre povos com esquemas mentais diferentes, um caminho viável sem necessitar daquilo que não há, nomeadamente um terreno neutral, ou um sistema comum de coordenação. Pois, nós não descobrimos nenhuma base inteligível na qual possamos dizer que os esquemas são diferentes. Seria igualmente errado anunciar a gloriosa boa-nova de que toda a humanidade – os falantes de uma mesma linguagem, pelo menos – partilham um esquema e uma ontologia comum. Pois, se não podemos inteligivelmente afirmar que os esquemas são diferentes, não podemos tão pouco afirmar que ele seja só um.


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Sábado, 10 de Julho de 2004
Davidson # 12

A questão de se isto é um critério útil é só a questão de quão bem nós compreendamos a noção de verdade, enquanto aplicada na linguagem, independentemente da noção de tradução. A resposta é, penso, que nós não a compreendemos de modo algum de maneira independente.

Reconhecemos frases como ‘“A neve é branca” verdadeira se e só se a neve é branca’ como trivialmente verdadeiras. Contudo, a totalidade de tais frases portuguesas determina a extensão do conceito de verdade para Português.

Alfred Tarski generaliza esta observação e converte-a num teste das teorias da verdade: uma teoria satisfatória da verdade para a linguagem L tem de implicar, para cada frase s de L, um teorema da forma ‘s é verdade se e só se p’ , onde ‘s’ é substituído por uma descrição de s e ‘p’ por ‘s’ ele próprio se L é Português, e por uma tradução de s para Português se L não é Português.

É claro que esta convenção – Convenção T – não é uma definição da verdade e não sugere que haja uma definição ou teoria singular que se aplique a todas as linguagens em geral.

Contudo, a Convenção de Tarski sugere, embora não o possa enunciar, um aspecto importante comum a todos os conceitos de verdade especializados. Consegue-o ao fazer um uso essencial da noção de tradução para uma linguagem que dominamos.

Uma vez que a Convenção T incorpora a nossa melhor intuição de como o conceito de verdade é utilizado, não se afigura ser muito de esperar de qualquer teste de um esquema conceptual radicalmente diferente do nosso se esse teste depender do pressuposto de que possamos divorciar a noção de verdade da noção de tradução.

Nem uma quantidade fixa de significados, nem uma teoria neutral de realidade podem assim confirmar a base para uma comparação de esquemas conceptuais. Seria um erro adicional procurar ainda essa base, entendendo por esta algo comum a esquemas incomensuráveis.


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Quarta-feira, 7 de Julho de 2004
Davidson # 11

O problema é que a noção de adequação à totalidade da experiência, como a noção de ajustamento aos factos, ou de ser verdadeiro em relação aos factos, não acrescenta nada de inteligível ao simples conceito de ser verdadeiro.

Falar da experiência sensorial, ou só dos factos, em vez da evidência, revela uma opinião sobre qual a origem ou a natureza da evidência mas não acrescenta nenhuma entidade nova ao universo contra a qual possamos testar os esquemas conceptuais.

A totalidade da evidência sensorial é o que nós queremos desde que seja toda a evidência que há; e esta somente é o que se requer para tornar as nossas frases e teorias verdadeiras.

Nada, contudo, nenhuma coisa, torna as frases e teorias verdadeiras: nem a experiência, nem as superfícies de irritação, nem o mundo, pode tornar uma frase verdadeira.

A nossa tentativa de caracterizar as linguagens ou os esquemas conceptuais em termos da noção de adequação a alguma entidade, converte-se assim no pensamento simples de que algo é uma teoria ou esquema conceptual aceitável se é verdadeiro. Talvez seja melhor dizer verdadeiro de uma forma geral de maneira a permitir que os adeptos de um esquema possam diferir em questões de detalhe. E o critério de um esquema conceptual diferente daquele que é propriamente o nosso torna-se: verdadeiro de um modo geral, mas não traduzível.


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Segunda-feira, 5 de Julho de 2004
Davidson # 10

A tese geral é que a experiência sensorial fornece a evidência para a aceitação das frases (entenda-se frases que podem incluir a teoria no seu todo).

No curso normal dos acontecimentos, uma teoria pode ser suportada pelos factos e ainda assim ser falsa. Mas, o que se tem em vista aqui não é só a evidência actual disponível; é a totalidade da evidência sensorial possível, passada, presente e futura.

Não precisamos de nenhuma pausa para reflectir no que isto significa. A questão é, para uma teoria se adequar ou enfrentar a totalidade da evidência sensorial possível, isso é essa teoria ser verdadeira.

Se uma teoria quantifica objectos físicos, números, ou conjuntos, o que essa teoria diz acerca dessas entidades é verdadeiro, desde que a teoria, no seu todo, se adeqúe à evidência sensorial. Pode assim ver-se como, deste ponto de vista, tais entidades podem considerar-se hipóteses ou suposições. É razoável considerar algo uma suposição se puder ser contrastado com algo que não o seja. Eis assim algo que não é uma experiência sensorial – pelo menos essa é a ideia.


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Quinta-feira, 1 de Julho de 2004
Davidson # 9

Nós podemos clarificar algumas quebras de tradução se estas forem moderadamente locais, porque o padrão geral da tradução bem sucedida proporciona o necessário para tornar as quebras inteligíveis. Mas, a nossa ambição era maior: queríamos encontrar sentido na existência de um língua que não pudéssemos de todo traduzir.

O que dizer da outra espécie de objecto, a experiência? Podemos imaginar uma linguagem a organizá-la? Muitas das mesmas dificuldades recorrem de novo. A noção de organização aplica-se só a pluralidades. Mas, seja qual for a pluralidade que escolhamos para ser aquilo em que a experiência consiste, nós teremos de a individuar segundo princípios familiares. Uma linguagem que organiza tais entidades tem de ser uma linguagem muito semelhante à nossa.

Quando passamos das questões de organização  para as de adequação, deslocamos a nossa atenção do aparato referencial da linguagem – predicados, quantificadores, variáveis e termos singulares – para as frases no seu conjunto.

São as frases que predizem (ou são usadas para predizer) frases, que se adequam aos nossos estímulos sensoriais, que podem ser comparadas ou confrontadas com a evidência. São as frases também que enfrentam o tribunal da experiência, embora, claro, o façam no conjunto do discurso teórico em que se integram.


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Segunda-feira, 28 de Junho de 2004
Davidson # 8

A ideia é então que alguma coisa é uma linguagem, e associada a um esquema conceptual, quer a consigamos traduzir ou não, se ela está numa certa relação (predição, organização, confronto ou ajustamento) com a experiência (natureza, realidade, respostas sensoriais). O problema é o dizer o que é esta relação, e ser mais claro sobre as entidades na relação.

As imagens e as metáforas dividem-se em dois grupos: os esquemas conceptuais (linguagens) ou organizam algo ou adequam-se-lhe. O primeiro grupo abrange também sistematizar, dividir (a corrente da experiência); outros exemplos do segundo grupo são predizer, dar conta de, enfrentar (o tribunal da experiência).

Quanto às entidades que são organizadas, ou a que o esquema deve adequar-se, penso também que podemos detectar duas ideias principais: ou é a realidade (o universo, o mundo, a natureza) ou a experiência (a cena que flui, superfícies de irritação, estímulos sensoriais, dados dos sentidos, o dado)

Nós não podemos atribuir um sentido claro à noção de organizar um objecto singular (o mundo, a natureza, etc.) a menos que esse objecto seja entendido como contendo ou consistindo em outros objectos.

Uma linguagem pode conter predicados simples cujas extensões não tenham correspondência em nenhuns predicados simples ou complexos, de uma outra linguagem. O que nos capacita a estabelecer este facto em casos particulares é uma ontologia comum às duas linguagens, com conceitos que individuem os mesmos objectos.


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Sábado, 26 de Junho de 2004
Davidson # 7

Apresso-me a afirmar que este segundo dualismo do esquema-conteúdo, de um sistema organizativo e de algo à espera de ser organizado, não é inteligível nem defensável. Ele próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. O terceiro e talvez o último, porque se nos livrarmos dele, não é líquido que reste algo distinto a que possa chamar-se empirismo.

O dualismo esquema-conteúdo tem sido formulado de muitas maneiras distintas. Worf, por exemplo, diz que “... a linguagem produz uma organização da experiência. ( ) a linguagem, antes de tudo, é uma classificação ou um arranjo do fluxo da experiência sensorial, a qual resulta numa certa ordem do mundo. Somos assim introduzidos num novo princípio de relatividade, que afirma que nem todos os observadores são guiados pela mesma evidência física para uma mesma representação do universo, a menos que os backgrounds linguísticos sejam similares ou possam de algum modo ajustar-se.”

A falha na inter-traduzibilidade é uma condição necessária para a diferença de esquemas conceptuais; a relação comum com a experiência ou evidência é o que é suposto ajudar-nos a dar sentido ao argumento de que são as linguagens ou os esquemas que estão em causa quando a tradução falha. É essencial a esta ideia que haja qualquer coisa neutral e comum que está de fora de todos os esquemas. Esta qualquer coisa comum não pode obviamente ser a matéria das línguas contrastantes, pois nesse caso a tradução seria possível.


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Segunda-feira, 21 de Junho de 2004
Davidson # 6

O dualismo do analítico-sintético é um dualismo de frases, algumas das quais são verdadeiras (ou falsas) quer por causa do que significam quer por causa do seu conteúdo empírico; enquanto outras são verdadeiras (ou falsas) por virtude do seu sentido (intensão) apenas, sem nenhum conteúdo empírico.

Se desistirmos do dualismo, abandonamos a concepção de sentido que a implica, mas não temos que abandonar a ideia de conteúdo empírico. Podemos afirmar que todas as frases têm conteúdo empírico. E este é por seu turno explicado por referência a factos, ao mundo, à experiência, às sensações, à totalidade dos estímulos sensoriais ou algo de semelhante.

O sentido (intensão) deu-nos um meio de falar acerca de categorias, a estrutura organizativa da linguagem, etc.; mas é possível abandonar o sentido e a analíticidade conservando a ideia de linguagem como encorpando um esquema conceptual. Assim, no lugar do dualismo analítico-sintético, obtemos o dualismo do esquema conceptual e conteúdo empírico.

Este novo dualismo é a fundação de um empirismo tosquiado dos dogmas insustentáveis da distinção analítico-sintético e do reducionismo – tosquiado, diga-se, da ideia inoperativa de que só podemos atribuir conteúdo empírico unicamente frase a frase.


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Sábado, 19 de Junho de 2004
Davidson # 5

A frase-chave é: tanto quanto eu sei. O que é claro é que a retenção de algum ou todo o vocabulário antigo, em si, não fornece nenhuma base para ajuizar se o novo esquema conceptual é o mesmo ou diferente do antigo.

Assim, o que parecia à primeira vista uma descoberta excitante – a verdade é relativa a um esquema conceptual – não provou até agora ser nada mais do que o facto familiar de que a verdade de uma frase é relativa (entre outras coisas) à linguagem a que pertence. Em vez de viverem em mundos (worlds) diferentes, os cientistas de Kuhn, como todos os que necessitam do dicionário de Webster, estão só separados por palavras (words) – «Not different worlds, just words apart».

Abandonar a distinção analítico-sintético não provou ajudar a dar sentido ao relativismo conceptual. Contudo aquela distinção pode ser explicada em termos de algo que sirva de apoio ao relativismo conceptual, designadamente a ideia de conteúdo empírico.


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