O utilitarismo
Na verdade, as ideias fundamentais de onde podem derivar-se os argumentos conducentes àqueles dois princípios e que a posição original contribui para modelar são de compatibilidade duvidosa com as que o utilitarismo perfilha. Assim, a ideia fundamental de organização da sociedade como um sistema justo de cooperação social de pessoas livres e iguais como membros cooperantes da sociedade ao longo da vida completa é bem distinta do princípio da utilidade. Neste é a administração eficiente dos recursos sociais que maximiza a satisfação do sistema de necessidades (desejos) construído por um observador imparcial a partir dos múltiplos sistemas individuados de necessidades e desejos constatados como dados[1].
Vejamos como um utilitarista trata a questão. R. B. Brandt considera o caso[2], durante a II Guerra, em que o governo inglês decreta que a população não ultrapasse a temperatura das casas em 50º F, para se economizar gás e electricidade. Seria verosímil que um ficcionado utilitarista francês a viver na Inglaterra raciocinasse assim: É muito improvável que a grande maioria dos ingleses não acate o decreto. Mas, não fará nenhum mal que alguns poucos, eu incluído, vivamos a 70º F. Isso trar-nos-á grande conforto e bem-estar. Deste modo, a felicidade geral aumentará desde que eu gaste a quantidade de gás e electricidade suficiente ao meu próprio conforto.
Seja m o número de membros de uma comunidade e f(n) o prejuízo global sofrido por n pessoas desobedecerem a um decreto do governo; esse prejuízo será uma função crescente com n. Se cada membro da comunidade avaliar para si próprio uma probabilidade p de desobedecer ao decreto é possível determinar, como funções de p, as probabilidades pi (i = 1, 2,
, m) de m pessoas desobedecerem ao decreto. Seja a o benefício pessoal de cada infractor admitamos, que possam avaliar-se monetariamente f(n) e a. Então se V for benefício provável total da comunidade, temos:
V = S pi [ia f(i)] (i = 1, 2,
, m).
Se conhecermos a função f(n) podemos calcular o valor de p para o qual dV/dp = 0. Esse será o valor de p que maximiza V.
É habitual reconhecer-se a importância mais teórica do que prática a este tipo de demonstração, atribuindo-se a p um valor tão negligenciável, ou, noutro tipo de exemplos, um risco tão elevado da sanção da infracção , que qualquer utilitarista sensato obedecerá à norma do governo. Contudo, a probabilidade não é nula, e a utilidade global da comunidade é superior à que resulta da desobediência zero![3] Será inclusivamente uma condição estimulante do utilitarismo, agir numa sociedade não predominantemente utilitária, dada a maior previsibilidade do comportamento dos outros. E, justamente John Rawls sugere que, em condições sociais normais, os dois princípios de justiça, tudo ponderado, podem talvez ser a melhor aproximação prática aos requisitos do princípio da utilidade. Tal não desmerece, por certo, diz da atitude empírica perante questões de meios e fins e a flexibilidade em lidar com um mundo em mudança, típica do utilitarismo. Porém, se a flexibilidade é uma recomendação aconselhável, isso se deve à sua utilidade[4], retorquirá com convicção inabalável o utilitarista benevolente, de todos os tempos e lugares, condicionado como sempre foi a coexistir com o factual pluralismo de valores quer do bem quer do péssimo.
[1] Ver John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p 48.
[2] R. B. Brandt, Ethical Theory , Prentice-Hall, Englewood Cliffs, New Jersey, 1959, p. 380. Citado em J.J.C. Smart & Bernard Williams, Utilitarianism For & Against, Cambridge University Press, 1973, pp 57-61. Nesta monografia, Smart enuncia o sistema de ética que Brandt designou por utilitarismo-em-acto por si distinguido do utilitarismo-como-regra. Ver em addendum, nota 1, sobre este assunto.
[3] No fundo, a questão assemelha-se às de idêntico resultado: desde a histórica acumulação primitiva na base do roubo e extorsão, ao branqueamento de capitais, a economia paralela, e mesmo a pluri-milenária colecta de impostos ou a simples cotização associativa: se o excedente económico assim arrecadado for reinvestido de forma socialmente mais útil do que a da justa distribuição ex-ante, cuja norma se prejudica, a comunidade enriquece em vez de quedar-se no nível de bem-estar de partida.
[4] J.J.C. Smart, op. cit., p 73.
Comparação de modelos de liberalismo
Estas ideias habilitam Rawls a construir um modelo de liberalismo político e tolerância que representa uma alternativa às três ordens de razão da tolerância, acima descritas. Scheffler compara as relações do «liberalismo político» com os modelos de «liberalismo como modus vivendi» e o de «liberalismo como pluralismo de valores», que resumimos como segue:
· o «liberalismo político» que o consenso de sobreposição modela não é um mero modus vivendi, um simples conjunto de acordos institucionais, mas uma concepção política de justiça, aceite mas não defendida por razões morais de uma ou outra natureza, decorrentes das visões abrangentes do mundo que cada um perfilha. Deste modo, o consenso de sobreposição beneficia de uma estabilidade maior do que o acordo de modus vivendi por se basear em considerações morais também presentes na concepção pluralística de valor e não em cálculos egoístas de interesses de grupo, vulneráveis a mutações no equilíbrio de poderes dentro da sociedade.
· Á semelhança da tese do modus vivendi, e em dissemelhança da concepção pluralística do valor, o «liberalismo político» combina o respeito pela realidade da diversidade e dos desacordos factuais com a relutância em fundar-se em premissas morais controversas.
O fundamento moral do liberalismo na posição original
O objectivo de Rawls é dotar as instituições liberais de um fundamento moral, sem pressupor, de per se, qualquer perspectiva moral contenciosa ou controversa. Este desideratum filia-se na sua aspiração mais antiga, presente na Teoria da Justiça, de deduzir uma concepção substantiva de justiça a partir de um suposto conjunto fraco e amplamente partilhado de condições e constrangimentos que comporiam a denominada posição original. Este conceito é agora construído como um dispositivo de representação de algumas ideais fundamentais, implícitas na cultura política pública, que justamente são o objecto do consenso de sobreposição, pelo que conserva, ao menos em parte, a anterior pretensão de a posição original representar pressupostos fracos e amplamente partilhados
Assim, para o objectivo do projecto de auto-compreensão do liberalismo as vantagens potenciais do liberalismo político parecem evidentes. Contudo, em termos finais, o atractivo desta perspectiva teórica deve depender, pelo menos em parte, de ser ou não uma possibilidade realística alcançar um consenso de sobreposição sobre uma concepção política de justiça.
Samuel Scheffler analisa, então, pontos delicados da doutrina de Rawls, começando por registar que a inclusão da perspectiva do utilitarismo clássico no caso-modelo do consenso de sobreposição parece oferecer algumas dificuldades teóricas de compatibilidade com os dois princípios de justiça.
Concepção política de justiça
Uma concepção política de justiça tem três configurações características[1]:
i. é uma concepção moral aplicável à estrutura básica da sociedade, i.é., às suas principais instituições sociais, económicas e políticas;
ii. é uma concepção apresentada de um ponto de vista independente, quer dizer não é apresentada como, nem derivada de, uma doutrina moral abrangente aplicada à estrutura básica da sociedade, como se esta fosse simplesmente um domínio em que tal doutrina se aplique. Ao contrário, a concepção política é um módulo, uma parte constitutiva essencial, que se ajusta e pode ser aceite por várias doutrinas abrangentes razoáveis perfilhadas por cidadãos e instituições culturais da sociedade regulada por tal concepção.
iii. o seu conteúdo é a expressão de certas ideias fundamentais entendidas como implícitas na cultura política pública de uma sociedade democrática.
Se a concepção política de justiça puder derivar-se somente das ideias latentes na cultura política pura, então ela pode ser objecto de um consenso de sobreposição, isto é, pode ser aceite pelos que perfilham diferentes doutrinas morais abrangentes, porque todos aceitam, embora por razões distintas, as ideias fundamentais que operam, com efeito, como premissas do argumento para a concepção de justiça. O que importa, escreve Rawls, é que os próprios cidadãos, no exercício da sua liberdade de pensamento e consciência, e no âmbito das suas doutrinas abrangentes, encaram a concepção política como deduzida de ou congruente com, ou pelo menos não conflituante com os seus outros valores.
O liberalismo político
Ora, Rawls propõe-nos uma forma inovadora de pensar acerca das bases da tolerância liberal.
O seu liberalismo político enfrenta a questão seguinte: Como é possível existir de modo duradoiro uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais que todavia permaneçam divididos profundamente por doutrinas religiosas, filosóficas e morais?
O núcleo da resposta do liberalismo político a esta questão é que, para ser possível tal sociedade, a sua estrutura básica deve ser efectivamente regulada por uma concepção política de justiça que seja objecto de um consenso de sobreposição de pelo menos as doutrinas abrangentes razoáveis perfilhadas pelos seus cidadãos.
Dois princípios de justiça
Uma concepção de justiça como equidade deverá basear-se, na tradição do pensamento democrático do ocidente dos últimos dois séculos, num conjunto de princípios que regulem os justos termos da cooperação entre cidadãos considerados livres e iguais e orientem o modo mais adequado de as instituições básicas da sociedade incorporarem e realizarem os valores da liberdade e igualdade entre todos os cidadãos concebidos como pessoas livres e iguais.
Rawls define os seguintes dois princípios de justiça[1]:
1º princípio: cada pessoa tem igual direito a um esquema plenamente adequado de direitos iguais e liberdades básicas; cada esquema é compatível com o esquema para todos; neste, as iguais liberdades políticas devem ter o seu justo valor garantido[2].
2º princípio: as desigualdades económicas e sociais são aceites desde que decorram do exercício de posições e cargos a que todos tenham acesso segundo uma igualdade equitativa de oportunidades[3] e contribuam para o maior benefício possível dos membros menos favorecidos da sociedade.
[1] Edição de referência a que nos reportaremos: John Rawls, O Liberalismo Político (Lisboa, Editorial Presença, 1ª edição, 1997). Citaremos o LP, seguido do número da lição, parágrafo e paginação. Ver: LP, I, §1, p 35 e VIII, §1, p 277-8.
[2] Isto é, de modo que não sejam puramente formais.
[3] Este princípio é precedido pelo requisito de medidas que assegurem a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, de modo a que possam tomar lugar na vida política e social, isto é, reconhece-se que abaixo de um certo nível de bem-estar material e social e de aprendizagem e educação as pessoas simplesmente não podem tomar parte na sociedade como cidadãos, e muito menos como pessoas livres e iguais envolvidas num sistema equitativo de cooperação. Vide LP, I, §1, p 36 e IV, §7, p 168.
Porquê a tolerância?
Scheffler identifica três razões básicas para a tolerância e interroga-se se o modelo de pluralismo liberal de Rawls será um fundamento alternativo e inovador para a tolerância.
q Uma concepção pluralística da natureza dos valores humanos: há a convicção de a esfera do valor ser de uma heterogeneidade irredutível, pelo que devem tolerar-se diferentes estilos de vida por serem caminhos de realização de diferentes bens humanos.
q Cepticismo genérico sobre a concepção do valor: convicção de não fazer sentido uma pretensa ideia objectiva de valor ou a noção de uma vida de bem. Diferentes estilos de vida devem tolerar-se, porque intelectualmente nada permite valorizar alguns estilos em relação a outros, pelo que não há qualquer base legítima para a intolerância.
q Um compromisso estratégico, um modus vivendi entre grupos sociais conflituantes, nenhum dos quais tenha condições de impor aos outros o seu estilo de vida preferido, assim aceitando uma política de tolerância mútua como a melhor solução nas circunstâncias vigentes.
O pluralismo de valores
Ora, nenhuma destas três bases de razão para a justificação da tolerância é suficientemente sólida para a sustentar ou a garantir em termos teóricos. Vejamo-lo, bem como às relações de compatibilidade ou de independência possíveis de estabelecer entre elas. Assim,
a tolerância, dado que emerge da pluralidade de teses sobre a natureza dos valores humanos, qualificar-se-á, ela própria por um grau de profundidade e de extensão questionável porque as diferentes teses são entre si controversas. Deste modo, a professada tolerância liberal das diferentes concepções do valor e do bem há-de depender de um envolvimento mais profundo em alguma concepção particular de valor que será incompatível ou mesmo aberrante com algumas perspectivas de valor que o liberalismo se propõe tolerar.
Pode dizer-se algo de semelhante da tolerância enquanto consequência natural do cepticismo porque este, não menos do que o pluralismo , representa um entendimento controverso da natureza dos valores.
A defesa da tolerância liberal como um modus vivendi é seguramente possível e um facto incontroverso em circunstâncias históricas específicas. Porém, é inegável a base pragmática de tal solução que é válida enquanto se mantiver o equilíbrio de forças conflituantes na sociedade e fica por explicar a atracção moral que a ideia de tolerância inspira.
Desta análise, podemos destacar que há diferença nas razões de tolerância da tese do pluralismo de valores em relação à que a defende como compromisso estratégico de modus vivendi, embora ambas, a meu ver, se reportem a uma situação objectiva única: há uma pluralidade de valores que convivem ou em coexistência pacífica ou em conflito latente.
«Lisboa é a única pátria possível
para os que nascem estrangeiros.»
O liberalismo rawlsiano: um novo fundamento para a tolerância liberal?
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A origem histórica do liberalismo no Ocidente é identificável com o movimento da Reforma e as controvérsias sobre a tolerância religiosa, ao longo dos séculos XVI e XVII, na Europa, a par de importantes movimentos políticos tendentes a limitar o poder das monarquias absolutas reinantes e visando proteger liberdades e direitos básicos estimulados pelo capitalismo mercantil e de navegação marítima então em pujante crescimento.
Independente da narrativa histórica e da compreensão das forças económicas que hajam suportado o movimento liberal nos últimos três séculos, é profícuo avaliar se os princípios da tolerância e da liberdade da fé e consciência não poderão apelar, com boas e adequadas razões, para uma moralidade independente não só da religião como da metafísica, que una os povos num entendimento universal de partilha e fruição pacífica do planeta, única casa humana (ainda) habitável, neste dealbar do século vinte e um.
De facto, é urgente compreender as bases da tolerância liberal, tanto mais quanto as sociedades ocidentais têm necessidade de se posicionarem em relação a outras sociedades, da Europa de Leste e outras regiões, que buscam instaurar instituições liberais pela primeira vez, e também em relação a sociedades, como o Irão, cujo carácter fundamentalista representa um desafio radical ao pensamento liberal[1]. Igualmente, a própria construção política da União Europeia, e o seu projectado alargamento, intensifica a importância deste projecto de auto-compreensão do liberalismo.
Por último, é facto assinalável, nas décadas subsequentes à II Guerra Mundial, a pressão migratória de populações geográfica e culturalmente heterogéneas que convergem sobretudo para a Europa e os Estados Unidos, dada a desigualdade de crescimento económico, o que instaura na ordem do dia a problemática da tolerância como questão não só política mas também sócio-cultural.
Apresentaremos, em termos sumários, a concepção política de Rawls, com o desenvolvimento último do Political Liberalism (1993) , de forma a ponderar criticamente os limites de validade e os aspectos de vulnerabilidade dessa doutrina, procurando dar expressão das interrogações e do desafio que o actual momentum histórico representa no plano da filosofia política[2].
A atracção moral do liberalismo decorre do seu empenho em tolerar diferentes modos de vida e concepções de valor, embora tal compromisso também seja a causa do que o liberalismo tem de mais intrigante: pois, qual é o fundamento para a tolerância liberal?
[1] Conforme artigo de Samuel Scheffler, The appeal of Political Liberalism, da revista Ethics 105 (Outubro 1994): pp. 4 -22, número dedicado a um «Symposium on John Rawls», que nos guiará na apresentação crítica do pensamento rawlsiano. O artigo de Scheffler é uma versão revista da sua intervenção na 3ª Conferência anual de Filosofia da Universidade de Califórnia, Riverside, de Maio, 1, 1993.
[2] A saber: as desigualdades de desenvolvimento, e consequente pressão das migrações demográficas, e a questão ambiental, de resto inaugurada pela Conferência de Estocolmo de 1972. Com o desmoronamento do bloco de Leste, o desarmamento nuclear e a coexistência pacífica ganharam algum fôlego para uma solução progressiva em confiança recíproca.
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