Terça-feira, 13 de Janeiro de 2004
Rawls # 6

O utilitarismo

Na verdade, as ideias fundamentais de onde podem derivar-se os argumentos conducentes àqueles dois princípios — e que a posição original contribui para modelar — são de compatibilidade duvidosa com as que o utilitarismo perfilha. Assim, a ideia fundamental de organização da sociedade como um sistema justo de cooperação social de pessoas livres e iguais como membros cooperantes da sociedade ao longo da vida completa é bem distinta do princípio da utilidade. Neste é a administração eficiente dos recursos sociais que maximiza a satisfação do sistema de necessidades (desejos) construído por um observador imparcial a partir dos múltiplos sistemas individuados de necessidades e desejos constatados como dados[1].

Vejamos como um utilitarista trata a questão. R. B. Brandt considera o caso[2], durante a II Guerra, em que o governo inglês decreta que a população não ultrapasse a temperatura das casas em 50º F, para se economizar gás e electricidade. Seria verosímil que um ficcionado utilitarista francês a viver na Inglaterra raciocinasse assim: “É muito improvável que a grande maioria dos ingleses não acate o decreto. Mas, não fará nenhum mal que alguns poucos, eu incluído, vivamos a 70º F. Isso trar-nos-á grande conforto e bem-estar. Deste modo, a felicidade geral aumentará desde que eu gaste a quantidade de gás e electricidade suficiente ao meu próprio conforto.”

Seja m o número de membros de uma comunidade e f(n) o prejuízo global sofrido por n pessoas desobedecerem a um decreto do governo; esse prejuízo será uma função crescente com n. Se cada membro da comunidade avaliar para si próprio uma probabilidade p de desobedecer ao decreto é possível determinar, como funções de p, as probabilidades pi (i = 1, 2, …, m) de m pessoas desobedecerem ao decreto. Seja a o benefício pessoal de cada infractor — admitamos, que possam avaliar-se monetariamente f(n) e a. Então se V for benefício provável total da comunidade, temos:

                                    V = S  pi [ia – f(i)]             (i = 1, 2, …, m).

Se conhecermos a função f(n) podemos calcular o valor de p para o qual dV/dp = 0. Esse será o valor de p que maximiza V.

É habitual reconhecer-se a importância mais teórica do que prática a este tipo de demonstração, atribuindo-se a p um valor tão negligenciável, — ou, noutro tipo de exemplos, um risco tão elevado da sanção da infracção —, que qualquer utilitarista sensato obedecerá à norma do governo. Contudo, a probabilidade não é nula, e a utilidade global da comunidade é superior à que resulta da desobediência zero![3] Será inclusivamente uma condição estimulante do utilitarismo, agir numa sociedade não predominantemente utilitária, dada a maior previsibilidade do comportamento dos outros. E, justamente John Rawls sugere que, em condições sociais normais, os dois princípios de justiça, tudo ponderado, podem talvez ser a melhor aproximação prática aos requisitos do princípio da utilidade. Tal não desmerece, por certo, diz “da atitude empírica perante questões de meios e fins e a flexibilidade em lidar com um mundo em mudança”, típica do utilitarismo. Porém, “se a flexibilidade é uma recomendação aconselhável, isso se deve à sua utilidade”[4], retorquirá com convicção inabalável o utilitarista benevolente, de todos os tempos e lugares, condicionado como sempre foi a coexistir com o factual pluralismo de valores quer do bem quer do péssimo.



[1] Ver John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p 48.

[2] R. B. Brandt, Ethical Theory , Prentice-Hall, Englewood Cliffs, New Jersey, 1959, p. 380. Citado em J.J.C. Smart & Bernard Williams, Utilitarianism For & Against, Cambridge University Press, 1973, pp 57-61. Nesta monografia, Smart enuncia o sistema de ética que Brandt designou por ‘utilitarismo-em-acto’ por si distinguido do ‘utilitarismo-como-regra’. Ver em addendum, nota 1, sobre este assunto.

[3] No fundo, a questão assemelha-se às de idêntico resultado: desde a histórica “acumulação primitiva” na base do roubo e extorsão, ao branqueamento de capitais, a economia paralela, e mesmo a pluri-milenária colecta de impostos ou a simples cotização associativa: se o excedente económico assim arrecadado for reinvestido de forma socialmente mais útil do que a da  justa distribuição ‘ex-ante’, cuja norma se prejudica, a comunidade enriquece em vez de quedar-se no nível de bem-estar de partida.

[4] J.J.C. Smart, op. cit., p 73.


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publicado por vbm às 11:53
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