Hume, David, Investigação sobre o Entendimento Humano, trad. de Artur Morão, Edições 70, Lisboa, 1989
Secção 5, Parte 1, §§ 34-38
("Sceptical solution of doubts exposed in Sec.4 concerning the operations of understanding")
§34
A filosofia e a religião, em vez de corrigir as nossas maneiras e extirpar os nossos vícios, pode alimentar a inclinação da mente para o lado em que o nosso temperamento está mais predisposto.
Se a aspiração for: podemos acabar:
"a firmeza magnânima do filósofo -->. refinando o egoísmo com a filosofia de Epitecto ou dos estóicos. ou limitar os nossos prazeres ao interior da mente
"o desprezo das riquezas e das honras -->. a lisonjear a nossa indolência natural.
CONTUDO, SE a filosofia acarinhada for a académica ou céptica,
não há que recear o inconveniente de agravar qualquer das nossas paixões desordenadas.
POIS, de que falam os académicos?
- da dúvida;
- da suspensão do juízo;
- do perigo das determinações apressadas;
- do confinamento em limites estreitos da indagação do entendimento;
- da renúncia a especulações fora dos limites da vida e da prática comuns.
ORA. com este ideal, toda a paixão se mortifica, excepto: "o amor à verdade."
TALVEZ POR ISTO, esta filosofia seja objecto de tanta censura e difamação infundada e tão exposta ao ódio e ressentimento públicos.
Da modéstia dos seus propósitos, NÃO temos de RECEAR que a filosofia céptica debilite sempre os nossos raciocínios da vida comum e destrua toda a acção e a especulação.
PORQUE:
"a natureza manterá sempre os seus direitos
e acabará por prevalecer
sobre todo e qualquer raciocínio abstracto."
Estes princípios de associação estão reduzidos a três, viz. Semelhança; um retrato naturalmente faz-nos pensar no homem desenhado. Contiguidade; quando St Dennis é mencionado, a ideia de Paris ocorre naturalmente. Causação; quando pensamos no filho, estamos preparados para prestar atenção ao pai. ( ) tanto quanto o que à mente diz respeito, estes são os únicos elos que ligam entre si as partes do universo, ou que nos conexionam com qualquer pessoa ou objecto exterior a nós próprios. Pois é só mediante o pensamento que as coisas agem sobre as nossas paixões, e como estas são as únicas amarras dos nossos pensamentos, elas são para nós o cimento do universo, e todas as operações da mente devem, em grande medida, depender delas.
(I a X, Excertos, em tradução livre, de David Hume, An Abstract of a Book lately published, entituled, A Treatise of Human Nature, &c., London, 1740)
[Para] explicar esta maneira ou sentimento, ( ) em palavras, ( ) podemos chamar-lhe uma concepção mais forte, mais vívida, mais animada, mais firme, ou uma concepção mais intensa. Seja qual for o nome com que designemos este sentimento, que constitui a crença, é evidente que ela tem um efeito imperioso sobre a mente do que a ficção ou a mera concepção.
( ) Ao considerar o movimento comunicado de uma bola a outra, não podemos encontrar nada mais do que contiguidade, prioridade da causa e conjunção constante. Mas, para lá destas circunstâncias, é comummente suposto que existe uma conexão necessária entre a causa e o efeito, e que a causa possui qualquer coisa, a que chamamos poder, força ou energia. A questão é, que ideia associamos a estes termos? Se todas as nossas ideias ou pensamentos derivam das nossas impressões, esse poder deve descobrir-se ele próprio aos nossos sentidos ou ao nosso sentimento interior.
( ) Se algo pode credenciar o autor para o nome glorioso de inventor, tal é o uso que faz do princípio de associação de ideias, que subjaz à maior parte da sua filosofia. A nossa imaginação tem grande autoridade sobre as nossas ideias; e não há ideias que sejam diferentes entre si que a imaginação não possa juntar e separar e compor em todas as variedades de ficção. Mas, não obstante o império da imaginação, há uma união ou laço secreto entre ideias particulares, que constrange a mente a conjugá-las mais frequentemente, e faz com que uma, após a sua manifestação, introduza a outra. Aqui emerge o que chamamos o apropos do discurso: aqui a conexão da escrita: e aqui a rede, ou cadeia de pensamento, que um homem naturalmente preserva mesmo na mais frouxa rêverie.
Dado que, portanto, a crença implica a concepção, e contudo é algo mais; e dado que não acrescenta nenhuma ideia nova à concepção ; segue-se que é uma MANEIRA diferente de conceber um objecto; algo que é distinto no sentimento, e não depende da nossa vontade, como o fazem todas as nossas ideias. A minha mente move-se, pelo hábito, do objecto visível de uma bola a deslocar-se contra outra, para o efeito usual do movimento da segunda bola. não apenas concebe esse movimento, como sente, nessa concepção, qualquer coisa diferente de uma mera fantasia da imaginação. A presença deste objecto visível, e a conjunção constante daquele efeito particular, torna a ideia diferente à sensibilidade daquelas ideias frouxas, que ocorrem à mente sem quaisquer preliminares. Esta conclusão parecerá um pouco surpreendente; mas somos a ela conduzidos por uma cadeia de prposições que não admitem qualquer dúvida. Posso facilitar a memória do leitor, resumo-as com brevidade :
Nenhuma matéria de facto pode provar-se, salvo mediante a sua causa ou o seu efeito.
Nada pode conhecer-se ser a causa de algo, salvo por experiência.
Não podemos dar nenhuma razão para tornar extensivo ao futuro a nossa experiência do passado;
Mas somos inteiramente determinados pelo costume, quando concebemos um efeito que sucede à sua causa habitual.
Mas também acreditamos que o efeito se seguirá, assim como o concebemos.
Esta crença não acrescenta nenhuma ideia nova à concepção.
Apenas altera a maneira de conceber, e introduz uma diferença no sentimento ou na sensibilidade.
A crença, portanto, em todas as matérias de facto, emerge somente do costume, e é uma ideia concebida de uma maneira peculiar.
Para dar a explicação disto, só há duas hipóteses. Pode dizer-se que a crença une alguma ideia nova àquelas que podemos conceber sem nelas assentir. Mas esta hipótese é falsa. Pois, em primeiro lugar, nenhuma ideia desse género pode produzir-se. Quando simplesmente concebemos um objecto, concebemo-lo em todas as suas partes. Concebemo-lo tal como pode existir, embora não acreditemos que exista. A nossa crença não decobriria novas qualidades. Podemos figurar o objecto inteiro na imaginação sem nele acreditar. Podemos dispô-lo num modo, em frente aos olhos, com cada circunstância de tempo e lugar. É o próprio objecto concebido tal como pode existir ; e quando nele acreditamos, não podemos fazer nada mais.
Em segundo lugar, a mente tem a faculdade de ligar e unir todas as ideias, que não envolvam contradição; e portanto se a crença consistisse nalguma ideia, que adicionássemos à simples concepção, estaria no poder do homem, mediante a adição de tal ideia à concepção, acreditar o que quer que fosse, entre o que pudesse conceber.
Esta é uma descoberta muito curiosa, mas que leva a outras ainda mais curiosas. Quando vejo uma bola de bilhar mover-se em direcção a outra, a minha mente é imediatamente levada pelo hábito ao efeito usual, e antecipa a minha visão ao conceber a segunda bola em movimento. Mas, isto é tudo ? Não faço senão CONCEBER o movimento da segunda bola ? Certamente que não. Eu também ACREDITO que ela se moverá. O que é então esta crença ? E em que difere ela da simples concepção da coisa ? Eis aqui uma nova questão impensada pelos filósofos.
Quando uma demonstração me convence de qualquer proposição, não apenas me faz conceber a proposição, mas também me torna sensível a que é impossível conceber qualquer coisa contrária. O que é demonstrativamente falso implica a contradição ; e o que acarreta contradição não pode conceber-se. Mas com respeito a qualquer matéria de facto, por muito forte que seja a prova derivada da experiência, posso sempre conceber o contrário, embora não possa sempre acreditar nisso. A crença, portanto, estabelece alguma diferença entre a concepção à qual assentimos e àquela a que não damos o nosso assentimento.
Somos determinados pelo COSTUME sómente a supor o futuro conformável ao passado. Quando vejo uma bola de bilhar mover-se em direcção a outra, a minha mente é imediatamente levada pelo hábito ao efeito usual, e antecipa a minha visão ao conceber a segunda bola em movimento. Nada há nestes objectos, considerados abstractamente, e de modo independente da experiência, que me induza a formar uma tal conclusão: e até depois de ter tido a experiência de muitos efeitos repetidos deste género, não há nenhum argumento que me determine a supor que o efeito será conformável à experiência passada. Os poderes, pelos quais os corpos operam, são inteiramente desconhecidos. Apercebemo-nos somente das suas qualidades sensíveis : e que razão temos nós para pensar que os mesmos poderes se conjugarão sempre com as mesmas qualidades sensíveis ?
Não é, portanto, a razão, que é o guia da vida, mas o costume. Só este determina a mente, em todas as instâncias, a supor o futuro conformável com o passado. Por muito fácil que este passo pareça, a razão nunca em toda a sua eternidade o conseguiria dar.
Os meus links