Livro. O que é um livro que nem mesmo sabe levar-nos para além de todos os livros?
(Gaia Ciência, Livro III, § 248)
A propósito da clareza. Quando se escreve é não somente para ser compreendido, mas também para não o ser. Um livro não fica diminuído pelo facto de um indivíduo qualquer o achar obscuro: ( ) Qualquer espírito um pouco distinto, qualquer gosto um pouco elevado escolhe os seus auditores; ao escolhê-los fecha a porta aos outros. As regras delicadas de um estilo nascem todas daí: são feitas para afastar, para manter a distância, para condenar o «acesso» de uma obra; para impedir alguns de compreender, e para abrir o ouvido aos outros, os tímpanos que nos são parentes.
Quanto a mim, digo-o aqui para nós, não permitirei nem à minha ignorância nem à minha vivacidade que me impeçam de vos ver claramente, ó meus amigos: ( ) Porque me sirvo dos problemas profundos como se fossem banhos frios: mal entro, saio logo. Este método, há-de dizer-se, impede de descer o suficiente, de ir ao fundo? trata-se de superstição de hidrófobo ( ) falam sem experiência. Ah! se soubessem como o frio torna as pessoas ágeis!... E de resto, diga-se de passagem: acreditais realmente que uma coisa se mantenha obscura porque não fizemos mais do que aflorá-la, deitar-lhe um olhar de passagem, lançar-lhe uma vista de olhos de passagem? ( ) Há pelo menos certas verdades ( ) que só é possível apanhá-las de surpresa: é surpreender ou largar... Enfim a minha exigência tem outra vantagem: ( ) sou forçado a ser muitas vezes rápido para que me compreendam ainda mais rapidamente.
Eis o que diz respeito à minha brevidade; já o mesmo não sucede tão brilhantemente com a minha ignorância, que não dissimulo. ( ) O que vem a ser necessário para que um espírito se alimente? nenhuma fórmula pode responder à pergunta, mas ( ). Não é a gordura que um bom dançarino pretende obter da sua alimentação ( ) ... e não conheço nada que um filósofo goste mais do que ser um bom dançarino.
(Gaia Ciência, Livro V, § 381)
«Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura»
(Sophia de Mello Breyner Andresen, "O jardim e a noite")
Efeito da mais antiga religiosidade. O homem irreflectido imagina que só a vontade é actuante; querer seria uma coisa simples, encarada tal como é, indeduzível, compreensível por si mesma. Este homem imagina que quando faz alguma coisa, quando, por exemplo, vibra um soco, é ele que bate, e que bateu porque o queria fazer. Não vê nisso nenhum problema; o sentimento de ter querido basta-lhe não somente para admitir a causa e o efeito mas ainda para imaginar que compreende a sua relação. Não sabe nada do mecanismo da acção, do cêntuplo e subtil trabalho que tem de ser efectuado para que chegue a bater, do mesmo modo que não imagina a capacidade total da vontade para operar a menor parte desse trabalho. A vontade é para ele uma força que age de maneira mágica: acreditar na vontade como na causa de efeitos é acreditar em forças que agem por magia. ( ) Os princípios «não há efeito sem causa» ( ), aparecem-nos como generalizações de princípios muito mais limitados, tais como estes: «agiu-se, quis-se» ( ); mas nos tempos primitivos da humanidade ( ) os primeiros não eram generalizações dos segundos, eram os segundos que eram interpretações dos primeiros. ( ) Contrariamente [aos que acreditam que o querer é simples e imediato] ponho os princípios seguintes: em primeiro lugar, para que um querer se forme é necessário que exista uma representação de prazer e de desprazer. Em segundo lugar: que uma violenta excitação produza uma sensação de prazer ou de desprazer, é assunto do intelecto interpretador, que, aliás, na maior parte das vezes, opera sem que o saibamos. Em terceiro lugar: só há prazer, desprazer e vontade nos seres intelectuais; a enorme maioria dos organismos ignora-os.
(Gaia Ciência, Livro III, § 127)
INTERPRETAÇÃO
Se me explico, então me implico:
A mim mesmo não me posso interpretar.
Mas quem suba o seu próprio caminho,
A minha imagem leva a uma luz mais clara.
INTERPRETATION
Leg ich mich aus, so çeg ich mich hinein:
Ich kann nicht selbst mein Interprete sein.
Doch wer nur steigt auf seiner eignen Bahn,
Trägt auch mein Bild zu hellerm Licht hinan.
(Poema de Nietzsche, trad. Paulo Quintela)
A vida não é um argumento. Arranjamos para nós um mundo no qual possamos viver, admitindo a existência de corpos, de linhas, de superfícies, de causas e de efeitos, de movimento e de repouso, de forma e de fundo: não fossem esses artigos de fé, ninguém hoje suportaria a vida! Mas isso não prova nada em seu favor. A vida não é um argumento; porque o erro poderia encontrar-se entre as condições da vida.
Causa e Efeito. Costumamos empregar a palavra «explicação», e o que seria necessário dizer é «descrição», para designar aquilo que nos distingue de estágios anteriores de conhecimento e de ciência. Sabemos descrever melhor do que os nossos predecessores, explicamos tão pouco como eles. Descobrimos sucessões múltiplas nos pontos em que o homem e o sábio ingénuos das civilizações precedentes viam apenas duas coisas, «causa» e «efeito», como se dizia; aperfeiçoámos a imagem do devir, mas não fomos além dessa imagem. Em cada caso a série das «causas» apresenta-se-nos mais completa; deduzimos: é preciso que esta ou aquela coisa tenha sido precedida para que se lhe suceda outra; mas isso não nos leva a compreender nada. ( ) Só operamos com coisas que não existem, linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis e espaços divisíveis...; como havia de existir sequer possibilidade de explicar quando começamos por fazer de qualquer coisa uma imagem, a nossa imagem! ( ) aprendemos a descrever-nos a nós próprios cada vez mais exactamente descrevendo as coisas e a sua sucessão. Causa e efeito: trata-se de uma dualidade que decerto nunca existirá; assistimos, na verdade, a uma continuidade de que isolamos algumas partes; do mesmo modo que, do movimento, nunca percebemos mais do que pontos isolados, não o vemos, concluímos pela sua existência. ( ) Uma inteligência que visse causa e efeito como uma continuidade, e não, à nossa maneira, como um retalhar arbitrário, a inteligência que visse a vaga dos acontecimentos, negaria a ideia de causa e efeito e de qualquer condicionalidade.
(Gaia Ciência, Livro III, § 112)
Origem do Lógico. De onde nasceu a lógica no cérebro humano? Do ilogismo, certamente, cujo domínio, primitivamente, deve ter sido imenso. Uma multidão de seres que raciocinava de maneira completamente diversa da nossa actual desapareceu; a coisa parece cada vez mais verdadeira. o que não podia, por exemplo, descobrir com bastante rapidez as «similitudes» necessárias quanto à sua alimentação ou aos seus inimigos, aquele que classificava com demasiada lentidão, que punha demasiada prudência em fazê-lo, diminuia as suas possibilidades de duração mais do que aquele que concluía imediatamente pela semelhança na conformidade. E era essa inclinação predominante que levava a tratar as coisas que se pareciam como se elas fossem iguais, porque, em si, não há duas coisas que sejam iguais, foi essa inclinação que primeiro forneceu a base de toda a lógica. do mesmo modo, para que nascesse o conceito de substância indispensável à lógica, ainda que estritamente falando nada de real lhe corresponda, foi necessário que se não visse, nem sentisse, durante muito tempo o que há de mutável nas coisas; os seres que não viam muito bem tinham uma superioridade sobre aqueles que percebiam as «flutuações» de todas as coisas. ( ) A maneira como se sucedem, no cérebro de hoje, pensamentos e deduções lógicas, corresponde a um processo e a uma luta de instintos que são, em si, deveras ilógicos e injustos, só percebemos geralmente o resultado desta luta; de tal modo este antigo mecanismo funciona em nós rapidamente e agora secretamente.
Os meus links