Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
(sophia de mello breyner andresen)
Origem do conhecimento. Durante longos séculos, o intelecto nunca engendrou mais do que erros; alguns mostravam-se úteis à conservação da espécie: quem os encontrava ( ) lutava com mais felicidade por si e pela sua descendência. Esses artigos de fé errados, transmitidos hereditariamente através de gerações, acabaram por se tornar numa espécie de ( ) fundo humano: admite-se, por exemplo, que há coisas que são iguais, que existem objectos, matérias e corpos, que uma coisa é o que parece ser, que a nossa vontade é livre, que aquilo que é bom para um é bom em si. Só muito tardiamente é que apareceram pessoas que negaram ou puseram em dúvida este género de proposições, só muito tardiamente surgiu a verdade, esta forma menos eficaz das formas de conhecimento. ( ) A partir de então a fé, a convicção, deixaram de ser as únicas forças, mas também o exame, a negação, a contradição; todos os «maus» instintos foram subordinados ao conhecimento e postos ao seu serviço; ( ) O conhecimento, a partir de então, tornou-se uma parte da própria vida, e, tal como a vida, uma força que foi crescendo sem detença; ( ) O pensador: eis agora o ser no qual a necessidade da verdade e os erros antigos que mantêm a vida, se dão o seu primeiro combate desde que a necessidade da verdade se afirmou também como uma força que conserva a vida. Dada a importância desta luta tudo o mais é indiferente: ela enuncia a última pergunta sobre a condição da vida, e faz a primeira tentativa para lhe responder com a experiência. Até que ponto a verdade suporta a assimilação? tal é esta pergunta, tal é esta experiência.
(Gaia Ciência, Livro III, § 110)
Defendamo-nos. Defendamo-nos de pensar que o mundo seja um ser vivo. Como se desenvolveria? De que se alimentaria? Como poderia crescer e multiplicar-se? ( ) Defendamo-nos até de pensar que o universo seja uma máquina; não foi certamente construído para um objectivo ( ). Defendamo-nos de supor por toda a parte a existência a priori de uma coisa tão bem definida como o movimento cíclico das constelações próximas da Terra; um olhar para a Via Láctea basta já para fazer nascer dúvidas ( ). A ordem astral em que vivemos é uma coisa excepcional; esta ordem e a medíocre duração que determina tornaram possível por sua vez esta excepção das excepções: a formação do orgânico. Mas o carácter do mundo é pelo contrário o de um caos eterno, não pelo facto de ausência de necessidade, mas pelo de uma ausência de ordem ( ). Ora como poderemos permitir-nos censurar ou louvar o universo! Defendamo-nos de lhe censurar uma falta de coração ou de razão, ou o contrário destas coisas: não é nem perfeito, nem belo, nem nobre, e não quer transformar-se em nada disso; não procura de forma alguma imitar o homem! Não é tocado por nenhum dos nossos juízos estéticos e morais! Não possui instinto de conservação, não possui qualquer instinto e ignora toda a espécie de lei. Defendamo-nos de dizer que eles existem na natureza. Essa só conhece necessidades: nela não há ninguém que ordene, ninguém que obedeça, ninguém que infrinja. Quando souberdes que não há fins, sabereis igualmente que não há acaso: porque é únicamente sob o olhar de um mundo de fins que a palavra «acaso» toma um sentido. Defendamo-nos de dizer que a morte é o contrário da vida. A vida não passa de uma variedade de morte, e uma variedade muito rara. ( ) Mas quando acabaremos com os nossos cuidados e as nossas precauções? Quando deixaremos de ser obscurecidos por todas estas sombras de Deus? Quando teremos completamente «desdivinizado» a natureza?
(Gaia Ciência, Livro III, § 109)
O nosso novo «infinito». Até aonde vai o carácter perspectivo da existência? possui ela mesmo outro carácter? uma existência sem explicação, sem «razão» não se torna precisamente uma «irrizão»? e, por outro lado, não é qualquer existência essencialmente «explicativa»? é isso que não podem decidir, como seria necessário, as análises mais zelosas do intelecto, as mais pacientes e minuciosas introspecções: porque o espírito do homem, no decurso destas análises, não se pode impedir de se ver conforme a sua própria perspectiva e só pode ver de acordo com ela. Só podemos ver com os nossos olhos; é uma curiosidade sem esperança de êxito procurar saber que outras espécies de intelecto e de perspectivas podem existir; ( ) Espero contudo que estejamos hoje longe da ridícula pretensão de decretar que o nosso cantinho é o único de onde se tem o direito de possuir uma perspectiva. Muito pelo contrário o mundo, para nós, voltou a tornar-se infinito, no sentido em que não lhe podemos recusar a possibilidade de se prestar a uma infinidade de interpretações.
No horizonte do infinito. Deixamos a terra, subimos a bordo! Destruímos a ponte atrás de nós, melhor destruímos a terra atrás de nós. E agora, barquinho, toma cuidado! Dos teus lados está o oceano; é verdade que nem sempre brame; a sua toalha estende-se às vezes como seda e ouro, um sonho de bondade. Mas, virão as horas em que reconhecerás que ele é infinito e que não existe nada que seja mais terrível do que o infinito. Ah! pobre pássaro, que te sentias livre e que esbarras agora com as grades desta gaiola! Desgraçado de ti se fores dominado pela nostalgia da terra, como se lá em baixo tivesse havido mais liberdade,... agora que deixou de haver «terra»!
É lá abaixo que quero ir: e de ora em diante creio
em mim
E nos meus talentos de piloto.
O mar abre-se para mim, no azul
Me leva o meu barco genovês.
Tudo cintila para mim com um esplendor novo,
Meio-Dia repousa no espaço e no tempo...
Só o teu olhar, formidavelmente,
Me fita, ó infinidade!
(Tradução de Alfredo Margarido)
PARA NOVOS MARES
Para lá - quero eu ir; e em mim
E nos meus pulsos confio.
Aberto o mar, para o azul
Vara de Génova o meu navio.
Tudo novo e mais novo aos olhos brilha,
Por sobre Espaço e Tempo o Meio-Dia dorme -:
Só o teu olhar, ó Infinidade!,
Olha pra mim, enorme!
(Tradução de Paulo Quintela)
NACH NEUEN MEEREN
Dorthin - will ich; und ich traue
Mir fortan und meinem Griff.
Offen liegt das Meer, ins Blaue
Treibt mein Genueser Schiff.
Alles glänzt mir neu und neuer.
Mittag schläft auf Raun und Zeit -:
Nur dein Auge - ungeheuer
Blickt michs an, Unendlickeit!
Sempre em nossa casa. Um dia, tendo alcançado o nosso fim, só com orgulho falaremos das longas peregrinações que fomos obrigados a fazer. Mas na realidade, não nos tínhamos apercebido da viagem. Se chegámos tão longe foi precisamente porque em todos os lugares nos parecia estarmos em nossa casa.
Mais vale dever. «Mais vale dever do que pagar com uma moeda que não traz a nossa efígie!» assim o quer a nossa soberania.
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