Nobreza e vulgaridade. Aos olhos das naturezas vulgares os sentimentos nobres e generosos parecem faltos de pertinência, por consequência de verosimilhança em primeiro lugar; ( ) Reconhece-se a natureza vulgar porque nunca perde de vista o seu proveito, pelo facto desta obsessão do objectivo, do lucro, ser nela mais forte do que o mais violento instinto: não se deixar arrastar pelo impulso desarrazoável das acções intempestivas: eis o que lhe serve de sageza e de dignidade. ( ) O gosto das naturezas superiores prende-se a coisas excepcionais, a coisas que deixam fria a maior parte dos outros homens e não parece ter nenhuma atração: a natureza superior mede os valores por uma escala pessoal. ( )
Contra o remorso. O pensador vê nas suas próprias acções, pesquisas e perguntas destinadas a dar-lhe este ou aquele esclarecimento: o êxito, o fracasso, ou, pior, sentir remorsos, deixa isso aos que agem sob uma ordem e que esperam a varada, se o gracioso senhor não se mostrar satisfeito com o resultado.
A consciência intelectual. Nunca mais acabo de refazer a experiência e de recalcitrar contra ela, não posso acreditar no facto, mau-grado a sua evidência; falta consciência intelectual à maior parte das pessoas; pareceu-me até muitas vezes que quando a possuímos, se está tão só no deserto como na cidade mais povoada. ( ) Quero dizer isto: que a maior parte das pessoas não acham desprezível acreditar nisto ou naquilo e agir de acordo com isso sem ter pesado o pró e o contra, sem ter tomado consciência profunda das suas supremas razões de agir, sem mesmo se ter incomodado a inquirir essas razões; ( ) Mas encontrar-se plantado no meio desta rerum concordia discors, desta maravilhosa incerteza, desta multiplicidade da vida, e não interrogar, não tremer com o desejo e a voluptuosidade de se interrogar, de nem sequer odiar aquele que o faz, talvez troçar disso até ficar doente, eis o que eu acho desprezível, e é esse desprezo que procuro em primeiro lugar em cada um de nós: não sei que loucura me persuade que qualquer homem, sendo homem, a possui. É a minha maneira de ser injusto.
Amizade estelar. Éramos dois amigos, somos dois estranhos. Mas isso é realmente assim: não iremos procurar escondê-lo ou calá-lo como se tivéssemos de corar. Somos dois navios cada um dos quais com o seu objectivo e a sua rota particular; ( ) esses corajosos barcos estavam lá tão tranquilos, debaixo do mesmo sol, no mesmo porto, que se teria acreditado que tinham alcançado o objectivo, que tinham tido o mesmo objectivo. Mas a omnipotência das nossas tarefas separou-nos em seguida, empurrados para mares diferentes, debaixo de outros sóis, e talvez nunca mais nos voltemos a ver: mares diferentes, sóis diversos nos mudaram! Era preciso que nos tornássemos estranhos um ao outro: era a lei que pesava sobre nós: é precisamente por isso que nos devemos mais respeito! ( ) Existe provávelmente uma formidável trajectória, uma pista invisível, uma órbita estelar, sobre a qual os nossos caminhos e os nossos objectivos diferentes estão inscritos como pequenas etapas;... elevemo-nos até este pensamento. Mas a nossa vida é demasiado curta e a nossa vista demasiado fraca para que possamos ser amigos, a não ser no sentido em que o permite esta sublime possibilidade... Acreditemos portanto na nossa amizade estelar, mesmo se tivermos de ser inimigos na terra.
No Sul
[...]
Razão! Ó razão importuna!
Levas-nos muito depressa ao nosso fim.
Mas ao voar aprendi o meu limite...
Já sinto coragem, e sangue, e novas seivas
Para uma vida nova e para novo jogo...
Pensar sozinho, sim, é a sabedoria,
Mas cantar sozinho... seria estúpido!
Ouvi pois uma canção em vossa honra,
E fazei silêncio em redor,
Pássaros maldosos.
[...]
(Excerto do poema, de Nietzsche)
É actuando que devemos abandonar. Eu odeio, no fundo, toda a moral que diz: «Não faças isto, não faças aquilo. Renuncia. Domina-te»... Gosto, pelo contrário, da moral que me leva a fazer uma coisa, a refazê-la, a pensar nela de manhã à noite, a sonhar com ela durante a noite, e a não ter jamais outra preocupação que não seja fazê-la bem, tão bem quanto for capaz, e capaz entre todos os homens. A viver assim despojamo-nos, uma a uma, de todas as preocupações que não têm nada a ver com esta vida: vê-se sem ódio nem repugnância desaparecer hoje isto, amanhã aquilo, folhas amarelas que o menor sopro um pouco vivo solta da árvore; ( ) «É a nossa actividade que deve determinar o que temos de abandonar; é actuando que deixaremos»,... eis o que amo, eis o meu próprio «placitum»! Mas eu não quero trabalhar para me empobrecer mantendo os olhos abertos, não quero essas virtudes negativas que têm por essência a negação e a renúncia.
Só criando. O que me custou e me custa ainda constantemente mais sofrimento, é dar-me conta de que é infinitamente mais importante conhecer o nome das coisas do que saber o que elas são. A sua reputação e o seu nome, o seu aspecto e a sua importância, a sua medida tradicional, o seu peso geralmente aceite todas as qualificações que estiveram na origem dos frutos do erro e do capricho, na sua maior parte, roupagens que se lançaram sobre elas sem tomar a precaução de as adaptar à sua essência e nem sequer à sua cor de pele tudo isso, à força de ser acreditado, de se transmitir, de se fortificar em cada nova geração, acabou por forma o seu corpo; a aparência primitiva acaba sempre por se tornar a essência e fazer o efeito da essência! Bem louco quem acreditasse que basta recordar essa origem e mostrar esse véu nebuloso da ilusão para destruir o mundo que passa por essencial, a que se chama «realidade»! Só criando o podemos aniquilar!... Mas não esqueçamos também isto: é que basta forjar nomes novos, novas apreciações e novas probabilidades para criar com o tempo também «coisas» novas.
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