Aos Realistas. Ó seres frios que vos sentis tão couraçados contra a paixão e a quimera e que tanto gostaríeis de fazer da vossa doutrina um adorno e um objecto de orgulho, dais-vos o nome de realistas e dais a entender que o mundo é verdadeiramente tal como vos aparece; que sois os únicos a ver a verdade isenta de véus e que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade ... ó queridas imagens de Sais! Mas não sereis ainda vós próprios, mesmo no vosso estado mais despojado, seres supremamente obscuros e apaixonados se vos compararmos aos peixes? ( )
Vede esta montanha, este mago. O que haverá de «real» neles? Experimentai tirar-lhes as nossas fantasmagorias, aquilo que os homens lhes acrescentaram, homens positivos! Ah se fôsseis capazes disso! Se pudésseis esquecer a vossa origem, o vosso passado, as vossas escolas preparatórias, ... tudo o que há em vós de humano e de animal! Não há para nós nenhuma «realidade», estamos longe de sermos tão estranhos uns para os outros como pensais, e a nossa boa vontade em ultrapassar a embriaguês é talvez tão respeitável como a crença que tendes de serdes incapazes de qualquer embriaguês.
«... se não regar todos os dias aquela planta de esquina, o reflexo do sol nas suas folhas amarelecidas torna-se nocivo aos meus olhos.
eis porque.
poderei entender que, não regando a planta, me escapo à ideia de tudo por igual se deslocar. nada se move na aparência, como quando fixamos a paisagem e apesar de lhe estar afecto o movimento próprio dos elementos e do seu conteúdo, tudo nos parece constante e imóvel - apesar do vento não se mover nas copas ou assim nos parecer pela distância desse efeito.
quando todos obedecem à previsibilidade das ocorrências e seguem o seu caminho, operam as suas tarefas, nada e ninguém se parece deslocar, movimentar. é una e comum a invisualidade, nenhuma imagem se retém dessa construção abstraccionista mas metódica.
o que sugere que só eu, que paro e me coloco como ponto fixo, elemento espacial e temporal de divisão, faço notar o seu movimento. só o que pára pode objectivar a concepção do movimento e realizá-lo integro.»
Ao desistir da dependência no conceito de uma realidade por interpretar, algo fora de quaisquer esquemas e da ciência, nós não renunciamos à noção de verdade objectiva bem ao contrário. Dado o dogma do dualismo do esquema e realidade, obtemos o relativismo conceptual, e a verdade relativa a um esquema. Sem o dogma, esta espécie de relatividade desaparece com ele. Claro que a verdade das frases se mantém relativa à linguagem, mas esta é a máxima objectividade possível. Ao desistir do dualismo esquema-mundo, nós não desistimos do mundo, mas restabelecemos o contacto não mediado com os objectos familiares cujo comportamento bizarro torna as nossas frases e opiniões verdadeiras ou falsas.
Voltamo-nos agora para a abordagem mais modesta: o caso de um insucesso parcial, e já não total, de tradução. Isto introduz a possibilidade de produzir variações e contrastes nos esquemas conceptuais, inteligíveis por referência à parte comum.
[Omito esta parte do ensaio de Davidson. O passo de demonstração segue o mesmo método: parte da premissa de uma teoria de interpretação ou tradução parcial, com conceitos, sentido das expressões e crenças não partilhadas para concluir que o que pode dar qualquer espécie de sentido ao desacordo possível depende inteiramente nalgum fundamento em que há acordo.]
Temos assim de concluir, penso, que a tentativa de dar um sentido firme à ideia de relativismo conceptual, e à de esquemas conceptuais, não se sai melhor no caso de falha parcial de tradução do que no de insucesso total da mesma.
Mas seria um erro sumariar que tenhamos mostrado que a comunicação é possível entre povos com esquemas mentais diferentes, um caminho viável sem necessitar daquilo que não há, nomeadamente um terreno neutral, ou um sistema comum de coordenação. Pois, nós não descobrimos nenhuma base inteligível na qual possamos dizer que os esquemas são diferentes. Seria igualmente errado anunciar a gloriosa boa-nova de que toda a humanidade os falantes de uma mesma linguagem, pelo menos partilham um esquema e uma ontologia comum. Pois, se não podemos inteligivelmente afirmar que os esquemas são diferentes, não podemos tão pouco afirmar que ele seja só um.
«Porém Palas Atena foi até à ampla Lacedemónia,
para lembrar ao glorioso filho do magnânimo Ulisses
o retorno do pai e para o incitar a pôr-se a caminho.
"Telémaco, não te fica bem estares longe de casa por mais tempo,
deixando para trás no teu palácio riquezas e homens tão
insolentes, não vão eles dividir e devorar os teus haveres,
ao mesmo tempo que terás feito uma viagem em vão.
Mas pede agora a Menelau, excelente em auxílio, para te pôr
a caminho, para ainda encontrares em casa tua mãe irrepreensível.»
(Odisseia, XV, 1-3; 10-15)
A questão de se isto é um critério útil é só a questão de quão bem nós compreendamos a noção de verdade, enquanto aplicada na linguagem, independentemente da noção de tradução. A resposta é, penso, que nós não a compreendemos de modo algum de maneira independente.
Reconhecemos frases como A neve é branca verdadeira se e só se a neve é branca como trivialmente verdadeiras. Contudo, a totalidade de tais frases portuguesas determina a extensão do conceito de verdade para Português.
Alfred Tarski generaliza esta observação e converte-a num teste das teorias da verdade: uma teoria satisfatória da verdade para a linguagem L tem de implicar, para cada frase s de L, um teorema da forma s é verdade se e só se p , onde s é substituído por uma descrição de s e p por s ele próprio se L é Português, e por uma tradução de s para Português se L não é Português.
É claro que esta convenção Convenção T não é uma definição da verdade e não sugere que haja uma definição ou teoria singular que se aplique a todas as linguagens em geral.
Contudo, a Convenção de Tarski sugere, embora não o possa enunciar, um aspecto importante comum a todos os conceitos de verdade especializados. Consegue-o ao fazer um uso essencial da noção de tradução para uma linguagem que dominamos.
Uma vez que a Convenção T incorpora a nossa melhor intuição de como o conceito de verdade é utilizado, não se afigura ser muito de esperar de qualquer teste de um esquema conceptual radicalmente diferente do nosso se esse teste depender do pressuposto de que possamos divorciar a noção de verdade da noção de tradução.
Nem uma quantidade fixa de significados, nem uma teoria neutral de realidade podem assim confirmar a base para uma comparação de esquemas conceptuais. Seria um erro adicional procurar ainda essa base, entendendo por esta algo comum a esquemas incomensuráveis.
O problema é que a noção de adequação à totalidade da experiência, como a noção de ajustamento aos factos, ou de ser verdadeiro em relação aos factos, não acrescenta nada de inteligível ao simples conceito de ser verdadeiro.
Falar da experiência sensorial, ou só dos factos, em vez da evidência, revela uma opinião sobre qual a origem ou a natureza da evidência mas não acrescenta nenhuma entidade nova ao universo contra a qual possamos testar os esquemas conceptuais.
A totalidade da evidência sensorial é o que nós queremos desde que seja toda a evidência que há; e esta somente é o que se requer para tornar as nossas frases e teorias verdadeiras.
Nada, contudo, nenhuma coisa, torna as frases e teorias verdadeiras: nem a experiência, nem as superfícies de irritação, nem o mundo, pode tornar uma frase verdadeira.
A nossa tentativa de caracterizar as linguagens ou os esquemas conceptuais em termos da noção de adequação a alguma entidade, converte-se assim no pensamento simples de que algo é uma teoria ou esquema conceptual aceitável se é verdadeiro. Talvez seja melhor dizer verdadeiro de uma forma geral de maneira a permitir que os adeptos de um esquema possam diferir em questões de detalhe. E o critério de um esquema conceptual diferente daquele que é propriamente o nosso torna-se: verdadeiro de um modo geral, mas não traduzível.
A tese geral é que a experiência sensorial fornece a evidência para a aceitação das frases (entenda-se frases que podem incluir a teoria no seu todo).
No curso normal dos acontecimentos, uma teoria pode ser suportada pelos factos e ainda assim ser falsa. Mas, o que se tem em vista aqui não é só a evidência actual disponível; é a totalidade da evidência sensorial possível, passada, presente e futura.
Não precisamos de nenhuma pausa para reflectir no que isto significa. A questão é, para uma teoria se adequar ou enfrentar a totalidade da evidência sensorial possível, isso é essa teoria ser verdadeira.
Se uma teoria quantifica objectos físicos, números, ou conjuntos, o que essa teoria diz acerca dessas entidades é verdadeiro, desde que a teoria, no seu todo, se adeqúe à evidência sensorial. Pode assim ver-se como, deste ponto de vista, tais entidades podem considerar-se hipóteses ou suposições. É razoável considerar algo uma suposição se puder ser contrastado com algo que não o seja. Eis assim algo que não é uma experiência sensorial pelo menos essa é a ideia.
Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:
"Ah, na verdade eu estava prestes a sofrer o triste destino
de Agamémnon, filho do Atreu, no meu palácio,
se tu, ó deusa, me não tivesses tudo dito, pela ordem certa!
Mas agora tece um plano, para que os possa castigar.
E tu fica ao meu lado, inspirando-me abundante coragem,
tal como quando de Tróia despimos o véu fulgente.
Se ao meu lado quisesses ficar, ó deusa de olhos garços,
contigo eu lutaria contra três vezes cem homens,
ó deusa soberana, se me concedesses o teu auxílio."
(Odisseia, XIII, 382-391)
Nós podemos clarificar algumas quebras de tradução se estas forem moderadamente locais, porque o padrão geral da tradução bem sucedida proporciona o necessário para tornar as quebras inteligíveis. Mas, a nossa ambição era maior: queríamos encontrar sentido na existência de um língua que não pudéssemos de todo traduzir.
O que dizer da outra espécie de objecto, a experiência? Podemos imaginar uma linguagem a organizá-la? Muitas das mesmas dificuldades recorrem de novo. A noção de organização aplica-se só a pluralidades. Mas, seja qual for a pluralidade que escolhamos para ser aquilo em que a experiência consiste, nós teremos de a individuar segundo princípios familiares. Uma linguagem que organiza tais entidades tem de ser uma linguagem muito semelhante à nossa.
Quando passamos das questões de organização para as de adequação, deslocamos a nossa atenção do aparato referencial da linguagem predicados, quantificadores, variáveis e termos singulares para as frases no seu conjunto.
São as frases que predizem (ou são usadas para predizer) frases, que se adequam aos nossos estímulos sensoriais, que podem ser comparadas ou confrontadas com a evidência. São as frases também que enfrentam o tribunal da experiência, embora, claro, o façam no conjunto do discurso teórico em que se integram.
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