A ideia é então que alguma coisa é uma linguagem, e associada a um esquema conceptual, quer a consigamos traduzir ou não, se ela está numa certa relação (predição, organização, confronto ou ajustamento) com a experiência (natureza, realidade, respostas sensoriais). O problema é o dizer o que é esta relação, e ser mais claro sobre as entidades na relação.
As imagens e as metáforas dividem-se em dois grupos: os esquemas conceptuais (linguagens) ou organizam algo ou adequam-se-lhe. O primeiro grupo abrange também sistematizar, dividir (a corrente da experiência); outros exemplos do segundo grupo são predizer, dar conta de, enfrentar (o tribunal da experiência).
Nós não podemos atribuir um sentido claro à noção de organizar um objecto singular (o mundo, a natureza, etc.) a menos que esse objecto seja entendido como contendo ou consistindo em outros objectos.
Uma linguagem pode conter predicados simples cujas extensões não tenham correspondência em nenhuns predicados simples ou complexos, de uma outra linguagem. O que nos capacita a estabelecer este facto em casos particulares é uma ontologia comum às duas linguagens, com conceitos que individuem os mesmos objectos.
Apresso-me a afirmar que este segundo dualismo do esquema-conteúdo, de um sistema organizativo e de algo à espera de ser organizado, não é inteligível nem defensável. Ele próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. O terceiro e talvez o último, porque se nos livrarmos dele, não é líquido que reste algo distinto a que possa chamar-se empirismo.
O dualismo esquema-conteúdo tem sido formulado de muitas maneiras distintas. Worf, por exemplo, diz que ... a linguagem produz uma organização da experiência. ( ) a linguagem, antes de tudo, é uma classificação ou um arranjo do fluxo da experiência sensorial, a qual resulta numa certa ordem do mundo. Somos assim introduzidos num novo princípio de relatividade, que afirma que nem todos os observadores são guiados pela mesma evidência física para uma mesma representação do universo, a menos que os backgrounds linguísticos sejam similares ou possam de algum modo ajustar-se.
A falha na inter-traduzibilidade é uma condição necessária para a diferença de esquemas conceptuais; a relação comum com a experiência ou evidência é o que é suposto ajudar-nos a dar sentido ao argumento de que são as linguagens ou os esquemas que estão em causa quando a tradução falha. É essencial a esta ideia que haja qualquer coisa neutral e comum que está de fora de todos os esquemas. Esta qualquer coisa comum não pode obviamente ser a matéria das línguas contrastantes, pois nesse caso a tradução seria possível.
A primeira a falar foi Atena, a deusa de olhos garços:
"Filho de Laertes, criado por Zeus, Ulisses de mil ardis!
Pensa como poderás pôr as mãos nos pretendentes sem vergonha,
que há três anos se assenhorearam do teu palácio,
fazendo a corte à tua mulher e oferecendo presentes.
Sempre em seu coração lamenta que não regresses:
a todos dá esperança e a cada homem manda recados,
mas o seu espírito está voltado para outras coisas."
O dualismo do analítico-sintético é um dualismo de frases, algumas das quais são verdadeiras (ou falsas) quer por causa do que significam quer por causa do seu conteúdo empírico; enquanto outras são verdadeiras (ou falsas) por virtude do seu sentido (intensão) apenas, sem nenhum conteúdo empírico.
Se desistirmos do dualismo, abandonamos a concepção de sentido que a implica, mas não temos que abandonar a ideia de conteúdo empírico. Podemos afirmar que todas as frases têm conteúdo empírico. E este é por seu turno explicado por referência a factos, ao mundo, à experiência, às sensações, à totalidade dos estímulos sensoriais ou algo de semelhante.
O sentido (intensão) deu-nos um meio de falar acerca de categorias, a estrutura organizativa da linguagem, etc.; mas é possível abandonar o sentido e a analíticidade conservando a ideia de linguagem como encorpando um esquema conceptual. Assim, no lugar do dualismo analítico-sintético, obtemos o dualismo do esquema conceptual e conteúdo empírico.
Este novo dualismo é a fundação de um empirismo tosquiado dos dogmas insustentáveis da distinção analítico-sintético e do reducionismo tosquiado, diga-se, da ideia inoperativa de que só podemos atribuir conteúdo empírico unicamente frase a frase.
A frase-chave é: tanto quanto eu sei. O que é claro é que a retenção de algum ou todo o vocabulário antigo, em si, não fornece nenhuma base para ajuizar se o novo esquema conceptual é o mesmo ou diferente do antigo.
Assim, o que parecia à primeira vista uma descoberta excitante a verdade é relativa a um esquema conceptual não provou até agora ser nada mais do que o facto familiar de que a verdade de uma frase é relativa (entre outras coisas) à linguagem a que pertence. Em vez de viverem em mundos (worlds) diferentes, os cientistas de Kuhn, como todos os que necessitam do dicionário de Webster, estão só separados por palavras (words) «Not different worlds, just words apart».
Abandonar a distinção analítico-sintético não provou ajudar a dar sentido ao relativismo conceptual. Contudo aquela distinção pode ser explicada em termos de algo que sirva de apoio ao relativismo conceptual, designadamente a ideia de conteúdo empírico.
Alguns filósofos e historiadores da ciência lamentam que os nossos modos de falar não estejam ainda ajustados ao padrão científico moderno, no qual o esquema e a linguagem possam ser melhor entendidos segundo um formato extensional e materialista. Contudo, não é de crer que a ciência e a compreensão avançassem com a possível excepção da moral se tais alterações tivessem lugar. Mas, a nossa questão presente é a de saber se se justificaria considerar essas alterações da linguagem como uma mudança no aparato básico conceptual.
Suponhamos que no meu gabinete do Ministério da Linguagem Científica, eu quero que o homem novo deixe de usar palavras para se referir a emoções, sentimentos, pensamentos e intenções, e passe a falar de estados fisiológicos e acontecimentos mais ou menos idênticos aos dos estados mentais. Como posso eu saber que os meus conselhos são seguidos se o homem novo fala uma nova língua? Tanto quanto sei, as novas frases brilhantes, embora roubadas da antiga linguagem em que se referiam a sensações fisiológicas, podem na mente dos falantes jogar o mesmo velho papel dos antigos conceitos mentais. [Diria John Locke, sobre a maleabilidade semântica: «o imperador Augusto, com todo o seu poder, é impotente para mudar o latim; mesmo que decretasse o significado de uma palavra, o povo poderia sempre usá-la atribuindo-lhe outra significação.» meu comentário]
«Agora mostrar-te-ei esta terra Ítaca, para que acredites.»
«Assim falando, a deusa dispersou o nevoeiro e a terra apareceu.
Alegrou-se de seguida o sofredor e divino Ulisses,
regozijando-se com a sua terra; e beijou o solo dador de cereais.»
(Odisseia, XIII, 344; 352-54)
A primeira metáfora requer uma distinção entre a linguagem do conceito e do conteúdo: usando um sistema fixo de conceitos (palavras com significados imutáveis) descrevemos universos alternativos. Algumas frases serão verdadeiras só por causa dos conceitos ou significados implicados; outras, por causa do modo de ser de cada mundo. Ao descrever mundos possíveis, jogamos com frases só deste segundo tipo.
A segunda metáfora (de Kuhn) sugere ao contrário um dualismo de uma espécie completamente diferente, o dualismo de um esquema total (ou linguagem) e um conteúdo por interpretar. A adesão a este segundo dualismo, embora não inconsistente coma adesão ao primeiro, pode ser encorajado por ataques ao primeiro. Vejamos como.
Desistir da distinção analítico-sintético, como básica para a compreensão da linguagem, é desistir da ideia de distinguir claramente entre teoria e linguagem. O sentido das frases é contaminado pela teoria sobre o que se suponha serem as frases tidas por verdadeiras.
Obtemos um esquema novo a partir de um antigo quando os falantes de uma língua passam a aceitar como verdadeiras todo um conjunto de frases anteriormente tidas por falsas (e, vice-versa, claro). Isto não pode ser descrito simplesmente como uma questão de passar a ver verdades em antigas inverdades. Porque o que se aceita, ao aceitar uma frase como verdadeira, não é a mesma coisa que se rejeita quando anteriormente a frase era tida por falsa. Uma mudança operou-se no sentido da frase porque ela pertence agora a uma nova linguagem.
Estudar critérios de tradução é assim um modo de enfocar critérios de identidade entre esquemas conceptuais. Poderemos então dizer que dois povos têm esquemas conceptuais diferentes se falarem línguas impossíveis de se inter-traduzirem?
Podemos imaginar dois casos de insucesso: completo ou parcial.
No primeiro caso, provavelmente deveríamos sustentar que uma forma de actividade que não possa interpretar-se como uma linguagem na nossa linguagem não é um comportamento discursivo. Contudo esta conclusão mesmo que seja uma verdade, como é credível que seja não é muito apelativa porque não emerge como conclusão de um argumento.
Não pode haver dúvida que a relação entre a capacidade de traduzir a linguagem de alguém e a de descrever as suas atitudes é uma relação muito estreita. Contudo, até que sejamos capazes de dizer mais acerca do que é esta relação, será sempre muito obscura a tese contra a intraduzibilidade das línguas.
Segundo Khun, os cientistas que operam em tradições científicas diferentes (sob diferentes paradigmas) trabalham em mundos diferentes. Strawson, por seu lado, convida-nos a imaginar mundos possíveis não-actuais, mundos que podem descrever-se, usando a nossa linguagem actual, por redistribuição dos valores de verdade sobre frases em vários modos sistemáticos. A clareza dos contrastes entre os mundos depende assim de supormos fixo o mesmo esquema de conceitos, os nossos recursos descritivos. Kuhn, ao contrário, propõem-nos que pensemos em observadores diferentes num mesmo mundo, que o abordam em sistemas de conceitos incomensuráveis.
Assim, os vários mundos imaginados de Strawson são vistos ou apercebidos ou descritos segundo o mesmo ponto de vista; o mundo único de Kuhn é visto de diferentes pontos de vista.
Donald Davidson
{Selecção e tradução livre do artigo de Donald Davidson sobre o 3º dogma do empirismo}
Os esquemas conceptuais são modos de organização da experiência; são sistemas de categorias que enformam os dados dos sentidos; são pontos de vista sob os quais os indivíduos, as culturas ou as épocas observam o fluxo dos acontecimentos.
Pode não haver qualquer tradução de um esquema para outro. A realidade ela própria será assim relativa a um esquema. Mesmo aqueles pensadores que perfilham um só esquema conceptual, estão dependentes ou sob a influência dessa ideia de um esquema conceptual.
Ora, o relativismo conceptual seria uma bizarra doutrina se tivesse em si algum sentido. O problema é que é difícil aumentar a inteligência das coisas conservando o grau de excitação que a sua ignorância suscita.
A metáfora dominante do relativismo conceptual a de diferentes pontos de vista parece revelar um paradoxo subjacente: diferentes pontos de vista podem fazer sentido somente se houver um sistema comum de coordenação no qual se projectem; porém, a existência de tal sistema comum repudia a pretensão de qualquer incomparabilidade dramática de pontos de vista.
Do que necessitamos é de estabelecer algum limite aos contrastes conceptuais, para impedir a travessia da zona do paradoxo da incomparabilidade.
Podemos aceitar a doutrina que associa a ideia de ter uma linguagem com a de ter um esquema conceptual. Onde estes diferem, também as linguagens o fazem. Porém, falantes de línguas diferentes podem partilhar um esquema conceptual se houver um modo de traduzir uma linguagem na outra.
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