(5) Referência e coerência: teorias da verdade
Mas, perguntar-se-á, que verdade é esta de compreensão sem identificação? É possível atribuir o predicado de verdade a proposições, asserções , frases.
As frases como sucessão de símbolos numa certa linguagem , distinguem-se das asserções um certo uso da frase em que é feita uma asserção directa, distinto de um seu uso indirecto, sem compromisso com a sua verdade; v.g., Ela foi ontem ao cinema vs Se ela foi ontem ao cinema, hoje não vai., e das proposições que são o conteúdo expresso por meio de um certo uso de certas frases e susceptível de ser verdadeiro ou falso.
As duas grandes correntes de teorias substanciais da verdade são:
as teorias da correspondência: X é verdade se e só se X corresponde aos factos (em particular, ao facto que X representa) ou, como dizia Aristóteles: «Verdade é dizer o que é daquilo que é e o que não é daquilo que não é; falso é o contrário.»
as teorias da coerência: X é verdade se for consistente (compatível) com um certo conjunto apropriadamente definido de outras proposições.[1]
Se a teoria da verdade como correspondência exibe uma certa circularidade: X é verdade se corresponder a um facto exterior ao sistema em que X se insere com coerência; mas, perguntar-se-á o que é um tal facto senão o que torna X verdadeiro?
A teoria da verdade como coerência, por seu lado, só resolve problemas cuja solução seja compatível com o conjunto adquirido de verdades, tendendo a privilegiar um ideal arrumador em detrimento de um experimentalismo ousado nas linhas de fronteira do que se exclui e ignora.
[1] Vide Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, Lisboa, Gradiva, 1997 [1994], p 453. Diz este autor que a teoria da verdade como coerência «tem dois pontos fortes: I) é verdade que testamos as crenças quanto à sua verdade à luz de outras crenças (entre elas crenças perceptivas); II) não podemos sair do nosso melhor sistema de crenças, para ver como está ele a sair-se em termos da sua correspondência com o mundo.»
(4) Sentido, referência e compreensão
Retomando Frege, sentido e referência mantêm-se as duas contribuições básicas da significação dos termos. Vimos como o sentido é, em geral, elucidado socialmente divisão do trabalho social linguístico; definição operacional do termo. A referência é, em parte, determinada indexalmente tendo em consideração a própria contribuição do objecto para a determinação do sentido (definição indexical). De qualquer modo, a referência é semântica e o sentido de um termo é consagrado pelo uso.
Temos de admitir que na linguagem natural e na comunicação em sociedade, a compreensão vem por graus, fixa-se em níveis diversos de compreensão. Identificar a referência sem equívoco não é obrigatório a todos os níveis de linguagem; para tanto há a cooperação social. Os peritos, esses sim, incluem a extensão no conceito significado pelo termo, que assim contribui para a intensão do sentido. Mas para os falantes comuns, a apreensão do sentido de um termo é uma competência defenível em graus, insuficiente para determinar a extensão.
(1)- x é água é V sss[1] x é água.
(2)- x é água é V sss x é H2O.
Embora (1) seja trivial e puramente extensional , a frase x é água tem um sentido coerente com muitas outras frases em que água está presente. Putnam defende (1) na linguagem comum e não (2). A verdade de (2) é, a asserida na linguagem especializada dos peritos. A questão é que, se exigissemos do utente comum da língua o conhecimento identificador de cada termo, nós estaríamos exigindo o máximo de compreensão, o que não corresponde à prática social da linguagem.
No fundo, é essa exigência que a teoria descritivista faz: compreender um termo requer o conhecimento identificador do objecto x referido pelo termo t; o uso competente de um termo faz-se quando existe a compreensão do termo. Esta exigência recai sobre o «eu», sujeito indivdual, e não sobre o «eu» entendido como comunidade linguística que recorre e compra o sentido aos especialistas, como na teoria de Putnam. As duas teses opoêm-se. Podemos formalizá-las simplificadamente assim:
(1) (C ® I) (Descritivismo)
Necessáriamente se há compreensão há conhecimento identificador.
(2) ◊ (C & ~I) (Putnam)
É possível haver compreensão sem conhecimento identificador.
Embora o esterótipo não seja necessário nem suficiente para a fixação da referência, ele abrange o conjunto de propriedades aparentes de um termo. O facto importante é que os falantes adquirem-no no uso dos termos e sem eles seria difícil uma comunicação bem sucedida; o estereótipo é, assim, normativo e social.
(2) A hipótese social da divisão do trabalho linguístico;
estereótipo e comunicação
Segundo Putnam, na comunidade dos falantes constata-se que há uma divisão de trabalho linguístico que reflecte o fenómeno mais amplo da divisão social do trabalho humano. A divisão do trabalho linguístico decorre da divisão não-linguística do trabalho. Há, claro, inúmeras palavras que não denotam qualquer divisão de trabalho linguístico, v.g., cadeira. Contudo, quando há uma prática de trabalho social que forja termos para designar estados de coisas diferentes por exemplo ouro de 18 k (o da ourivesaria portuguesa) versus ouro de 14 k (o da África do Sul); ovos de aviário (criação intensiva) versus ovos de campo (agricultura biológica) se tal distinção interessar ser utilizada ou empregada pelos que não a conhecem, os termos são adquiridos pela comunidade dos falantes em geral, desde que haja a possibilidade de recurso à subclasse de falantes especial que conhece e emprega tal distinção de termos. Se só os conhecedores tiverem uma razão para usar um termo e os restantes não, o termo não é usado por estes.
Esta hipótese de Putnam presentemente, de aceitação consensual tem um importante corolário para a sua filosofia da linguagem, a saber[1]:
Sempre que um termo está sujeito a uma divisão de trabalho linguístico, o falante comum que o aplica nada tem que lhe fixe a extensão.
Em particular, o seu «estado psicológico individual», seguramente não fixa a sua extensão, e só a situação sócio-linguística da comunidade linguística, à qual o falante pertence, fixa a extensão.
(2) Estão os significados na cabeça? ou ... «está» a cabeça nos significados?
No argumento da Terra Gémea uma espécie de «experiência de pensamento» («gedanken experiment») Putnam procura mostrar que um mesmo estado psicológico, uma igual intensão de dois falantes na utilização de um mesmo termo pode significar uma referência de diferentes extensões.
Imagine-se que, «numa galáxia distante, havia um planeta muito semelhante ao nosso, com pessoas como nós, falando uma língua indistinguível do inglês.»[1] Nesta Terra Gémea podemos supor que tudo é exactamente como na Terra, salvo a peculiaridade de o líquido que chamamos água não é H2O, mas um líquido diferente cuja fórmula química complexa abreviámos para XYZ.
Não obstante, suporemos que XYZ é perceptualmente indistinguível da água, quer no sabor, quer na aparência, quer na sua distribuição por mares, lagos e rios em ambos os planetas[2].
Agora, vejamos: em 1750, a expressão «água» na Terra, antes de se conhecer a sua composição química, referia-se, objectivamente não obstante tal desconhecimento , a H2O; enquanto que no planeta gémeo referia-se a XYZ. Assim, embora as pessoas de um e outro planeta estivessem todas no mesmo estado psicológico em relação ao termo água, elas tinham diferentes extensões (H2O ¹ XYZ), pelo que a intensão não determina a extensão, que independe do (des)conhecimento dos falantes.
Poder-se-á contudo objectar: porquê aceitarmos que a palavra água tenha a mesma extensão em 1750 e em 1950, em ambas as Terras? A lógica dos termos relativos a categorias naturais, como água ou tigre, tem implícita a pressuposição empírica de que qualquer aplicação ostensiva do termo Isto é água, Aquilo é um tigre acarreta o que pode designar-se por uma condição necessária e suficiente revogável, falsificável: Aquele líquido é água se tiver idêntica estrutura à desta substância, Aquele animal é um tigre se for da mesma espécie daquele carnívoro da selva. Ou seja, ainda que haja uma primeira e aproximada identificação do género de cada substância através de certas características superficiais (estereótipo), o ponto crucial é que a extensão da palavra é determinada pela relação teorética de semelhança entre os indíviduos denotados pela mesma palavra x é o mesmo líquido que y; z é o mesmo animal que h.
Ora, a razão para preservar a extensão de uma palavra deriva de, a possibilidade de a futura investigação científica poder descobrir que a suposta micro-estrutura de dado objecto é falsa relativamente ao que a experiência técnicamente mais precisa revele ser afinal o caso, não alterar o facto desta ser a micro-estrutura real do objecto quer antes quer depois da descoberta. É assim ela [a estrutura real do objecto] que determina a extensão do significado de um termo, e não «o que está na cabeça» que é sempre conhecimento conjectural e falsificável por um contra-exemplo factual válido. Sempre, o movimento requerido é o de ajustamento da mente ao mundo, pelo que a cabeça está sim nesse tropismo para a inteligibilidade dos factos do mundo, do que os termos da linguagem são a expressão.
[1] Cf. John Searle, Intencionalidade um ensaio de filosofia da mente, trad. de Madalena Poole da Costa, Relógio dÁgua, 1999 [1983], p 255.
[2] Alguns críticos do argumento de Putnam questionaram as suas intuições quanto a uma Terra Gémea com doppelgängers dos humanos com setenta por cento de XYZ nos seus corpos e uma neurofisiologia homotípica, partícula a partícula ... Como, porém, esta irrealidade não afecta a validade do argumento, a objecção é discipienda.
«We shall suppose that somewhere in the galaxy
there is a planet we shall call Twin Earth.
Twin Earth is very much like Earth;
in fact, people on Twin Earth even speak English.
In fact, ( ) the reader may suppose
that Twin Earth is exactly like Earth.
( ) One of the peculiarities of Twin Earth
is that the liquid called water is not H2O
but a different liquid whose chemical formula
is very long and complicated.
I shall abbreviate this chemical formula
simply as XYZ.»
(Hilary Putnam, «The Meaning of Meaning», in Mind, Language and Reality, Philosophical Papers, Vol. 2, Cambridge University Press, 1975, p. 223)
O «sinn» serve para três coisas simultâneas:
Note-se que o «sinn», que determina a referência, pode ser considerado não psicológico é abstracto, como dissémos; mas, o acesso ao «sinn» (o «grasping», a captação do sentido) é sempre de natureza psicológica.
Em resumo, podemos fomular como segue a tese de Frege (e Carnap):
Assim, o estado psicológico que corresponde à apreensão da intensão («sinn») de um termo determina a sua extensão. Ora, Putnam vai demonstrar que este resultado é falso.
Frege não se limita a mostrar que a referência é dependente da fixação do sentido, o «sinn»-abstracto; vai um passo adiante e tenta argumentar que é a compreensão subjectiva (seja individual ou colectiva) do sentido, a intensão, que determina a referência. É contra isso que Putnam constroi o seu famoso argumento da Terra Gémea.
O puzzle de Frege mostra claramente que o significado não pode ser só a referência, porque há diferença no sentido das expressões, logo o significado não se reduz à referência; contudo, o argumento do Putnam, embora não o que Frege defende no seu puzzle, vai em sentido contrário mostrar que o que está na cabeça não é suficiente para dar o significado de uma palavra (a história da Terra Gémea).
Assim, a argumentação de Putnam vai mostrar que embora o significado não se reduza à referência tem de a incluir como componente; enquanto que Frege, depois de concluir que a referência não é suficiente para a fixação do significado, vai para o outro extremo e tenta argumentar que a referência é determinada pelo que está na cabeça, pela intensão.
(1) Os conceitos de intensão e extensão de um termo: Frege e Putnam.
Gottlob Frege (1848-1925) é o fundador da lógica moderna ou lógica matemática que superou as limitações da lógica de Aristóteles. Esta baseava-se na análise de todo e qualquer enunciado pela combinação dos seus termos, eles próprios associados e comprometidos com a forte ontologia de observação do mundo real[1].
Frege criou a ideografia, linguagem dos sinais e regras do cálculo lógico[2]. A ideografia permite também construir novas proposições a partir de proposições dadas, utilizando os conectores lógicos (&, Ú, Ø, ®, ↔)[3] e a quantificação. A sintaxe lógica dá seus primeiros passos com Frege.[4] Doravante, a lógica desenvolve more geometrico o seu próprio corpo de enunciados, independentizando-se da linguagem natural.[5]
No seu artigo Sentido e denotação («Sinn und bedeutung», 1892), Frege distingue a intensão ou sentido («sinn») de uma expressão linguística o conceito associado ao uso do termo, aquilo por intermédio do qual podemos identificar as coisas que são a extensão do termo da denotação ou extensão, que é a referência da expressão. É a intensão de um termo que determina a sua extensão. A inversa não é verdadeira. Dois termos não podem diferir em extensão e ter a mesma intensão. O «sinn» de uma expressão linguística determina, assim, autónomamente, a referência da expressão.
Contudo, na linguagem, nomes ou signos diferentes, do mesmo objecto, designam modos de apresentação distintos desse objecto, equivalendo-se, porém, numa igualdade de sentido das expressões em que ocorrem. O puzzle de Frege, a interrogação sobre se a igualdade a=b é a igualdade entre os objectos ou entre os nomes eles próprios, tem por solução que ela é a do sentido. Com efeito, a igualdade não pode ser a dos objectos denotados. E também não é só a igualdade entre os símbolos utilizados para designar as coisas. Como símbolo, a¹b. A igualdade é a do sentido, a intenção com s , do objecto designado. Seja, por exemplo, o ponto comum (p) das bissectrizes (a, b e c) dos ângulos de um triângulo:
«A verdade,
o mais belo nome da realidade,
é uma vagabundagem divina.»
(Platão)
No célebre artigo de 1975 The Meaning of meaning[1] , Hillary Putnam desenvolve o seu conhecido argumento da Terra Gémea e, por implicação, debate a generalidade das questões centrais da filosofia da linguagem.
O objectivo deste ensaio é o de expor algumas das ideias-chave da filosofia da linguagem abordadas no artigo de Putnam, designadamente:
(1) Os conceitos de intensão e extensão de um termo: Frege e Putnam;
(2) Estão os significados na cabeça? ou ... «requere-se» a cabeça nos significados?
(3) A hipótese da universalidade da divisão do trabalho linguístico;
estereótipo e comunicação;
(4) Sentido, referência e compreensão;
(5) Referência e coerência: teorias da verdade;
(6) Realidade e apreensibilidade: Searle e Putnam;
(7) Apreensibilidade do real e linguagem
[1] Vide «The Meaning of Meaning», in Mind, Language and Reality, Philosophical Papers, Vol. 2, Cambridge University Press, 1975.
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