Mas, por admirável que o intelecto humano seja, se se provar a identidade spinozista mente-corpo, isto é, que os eventos mentais são na realidade idênticos aos eventos cerebrais e outros eventos físicos, de modo que as propriedades da razão são realmente as da experiência a lidar com o mundo; então, como assevera Quine, nenhuma noção de verdade a priori é imune a revisão e a nossa racionalidade é correlata da nossa própria biologia falível.
Hilary Putnam, no seu livro Razão, Verdade e História[1], mostra que, nesse pressuposto, a identidade de propriedades o experienciar a sensação Q e o estar no estado cerebral C, na linha do pensamento de Spinoza seria uma identidade sintética de propriedades, à maneira de Kant, e a própria noção de correlação mente-corpo, problemática no plano epistemológico.
Tal como quando a física asserta que a temperatura é a energia cinética molecular média, enuncia, prima facie, a identidade da propriedade de ter uma determinada temperatura ser realmente a de ter uma certa energia molecular, as duas exprimindo a mesma «grandeza física», sem por isso, serem sinónimos uma da outra face à diferença expressiva no modo de apresentação da propriedade idêntica; assim, em lógica, as expressões «X é P» e «X é Q» não expressarão sinonímia se os predicados P e Q não forem o «mesmo», mas as duas proposições referenciarão uma só realidade, se a propriedade P for a mesma que a propriedade Q, as quais, por oposição aos predicados, podem ser «sinteticamente idênticas».
Já a noção de correlação, segundo Putnam, mostra-se problemática, não porque exista qualquer evidência de não-correlação, mas por ser indiscernível a sua observação.
Em neurofisiologia, não é possível estabelecer uma cadeia causal linear entre um estado sensorial Q e um correspondente estado cerebral; existem ramificações e reencontros, implicando diferentes zonas de neurónios; uma propriedade P1 pode ser inobservável, acompanhando-se de outra propriedade P2, também inobservável, formando as duas uma disjunção, (P1 ou P2), que é um estado sensorial.
Ou seja, diz Putnam «nesta ontologia, a disjunção das duas propriedades inobserváveis, pode ser observável.»[2] O que a mente experiencia como «um dado simples é uma complicada função lógica de propriedades inobserváveis.»
Ora, argumenta Putnam, se um realista metafísico aceita este discurso do saber neurofisiológico sobre o estado sensorial desprovido de qualquer elemento de convenção da investigação científica ele estará na mesma posição do físico ingénuo que creia ser uma verdade não-convencional a asserção a temperatura é energia cinética molecular média.
Tal posição, acarretará para o realista metafísico, a consideração de muitos mais requisitos, implicados pela propriedade de um estado sensorial; desde o registo da impressão no córtex cerebral, ao de algum tipo de linguagem do pensamento, no cérebro, passando pelo input no centro da fala, ao acesso aos sinais de memória já formados, etc. Isto é, «o estado sensorial tem de ser pensado como igual à conjunção destas várias propriedades.»
Agora, se alguma componente desta conjunção falhar, poderá dizer-se que não há sensação? A resposta a esta questão vai forçar a que o caso seja legislado, e não disputado, conclui Putnam.
Não se compreenderão as propriedades das coisas na ignorância das suas essências. A «via correcta de pesquisa», defende Spinoza, «consiste em formar pensamentos a partir de uma definição dada», a qual deverá explicitar «a essência íntima da coisa».
Tratando-se de uma coisa criada, a definição deverá «compreender a causa próxima» e o seu conceito deve ser tal que todas as suas propriedades se possam dela inferir; deste requisito deriva que «toda a definição deve ser afirmativa.»[3]
Para Spinoza, é necessário, antes de tudo, «deduzir todas as nossas ideias de coisas físicas, ou seja, de seres reais», progredindo «segundo a série da causas, de um ser real para outro ser real», de modo a «deles deduzir algo de real» ou para «os deduzir de algo de real.»[4]
«Saibamos usar os nossos sentidos» e façamos «experiências que bastem para determinar a coisa que se investiga», de modo a que concluamos segundo que princípios a coisa se explica na singularidade da sua existência e se nos manifesta na sua natureza íntima.[5]
[1] Op.cit., p. 48-49.
[2] Vide, Baruch Spinoza, Tratado da reforma do entendimento, ed. bilingue, trad. Abílio Queirós, Edições 70, 1987, § 93, p 82.
[3] Op. cit., § 96, pp 82-83.
[4] Esta forte defesa da investigação dedutiva é entendida por Spinoza, à maneira de Platão não sobre a série de coisas singulares mutáveis mas apenas a série das coisas fixas e eternas, em que devem procurar-se as leis inscritas nessas coisas, os seus verdadeiros códices, segundo os quais «todos os singulares se fazem e ordenam.» Vide, op. cit., §§ 100-101, p 86.
[5] Aos que acusem Spinoza de dogmatismo abstracto, vale a pena lembrar o seu materialismo radical que vai ao ponto de afirmar não ser por se deduzir validamente de uma premissa verdadeira, que uma conclusão também o será, mas sim porque ambas são verdadeiras é que se nos torna possível deduzir uma da outra. Esta mesma objectividade é a base do seu ideário político de liberdade e tolerância, três séculos antes do pensamento liberal contemporâneo, fundamentado e animado por John Rawls.
Ora Hume afirma que nós só nos apercebemos, pela experiência, da conjunção constante dos eventos, e que a sua repetição cria na mente a imaginação de uma conexão necessária entre os eventos, a qual, em si, é inobservável e indemonstrável.
Quanto a nós, pode bem dar-se que o modus operandi da causalidade última entre os fenómenos seja realmente inacessível à observação humana e indemonstrável a sua necessidade metafísica; porém, o certo é que toda a compreensão inteligível do mundo que nos rodeia não pode deixar de assentar na expressividade significativa das relações e da emergência de relações entre as coisas umas com as outras. Pode esta conexão necessária entre os eventos não ser um dado dos sentidos, que não será por isso menos implicada, requerida e pressuposta na ordem que rege os factos na sua objectividade inteligível.
Kenneth Craik sugere um paralelismo mundo-mente muito interessante quer para a causalidade microscópica quer para a macroscópica.[1] Nesta, a relação espacial proporciona a experiência mais comum da causalidade: «é o caso em que os objectos se obstruem ou se suportam uns aos outros ou em qualquer modo se influenciam mutuamente por causa da sua inaptidão de se atravessarem reciprocamente ou ocuparem o mesmo espaço ao mesmo tempo.»
Mas esta noção de ocupar o mesmo espaço requer modificação na sua aplicação à escala microscópica. Já mesmo à escala macro, sabemos que dois gazes podem ocupar o espaço ocupado previamente por um só, a igual pressão, após combinação química.
Ora, no caso de um electrão, o espaço por si ocupado aparenta-se indefinido e variável consoante se considere o espaço em que o seu campo eléctrico ou a sua massa se faça sentir; contudo, parece continuar a ser verdade afirmar que dois objectos ou alterações para abranger o caso do campo eléctrico-magnético da mesma espécie nunca ocupam o mesmo espaço no mesmo tempo[2].
Isto parece bem familiar, similar ao princípio da não-contradição: uma coisa não pode ser e não ser algo ao mesmo tempo; um objecto parece, assim, incluir na sua própria facticidade, algum poder de afectar outros objectos, designadamente criando-lhes restrições nos lugares possíveis em que podem existir.
Quer a causalidade macroscópica quer a microscópica não infringem a segunda lei da termodinâmica. A primeira parece assentar na inaptidão de dois corpos similares ocuparem o mesmo ponto do espaço-tempo, o que pressupõe um estado estacionário e de equilíbrio dos objectos entre si em torno de uma média condicionante por exemplo, no caso de gás num recipiente, a colisão das moléculas com as paredes, é em média igual à pressão exercida pela paredes do recipiente.
Qualquer competição pela ocupação de uma certa posição não pode ser bem sucedida porque requer um excesso de energia sobre o estado médio das moléculas em equilíbrio. Se, contudo ainda no exemplo do gás misturarmos gás adicional no recipiente numa pressão mais elevada, ele encontrará o espaço do primeiro volume não totalmente ocupado, porque a energia cinética média do segundo volume é mais elevada e difundir-se-á no espaço do recipiente até que o equilíbrio seja restaurado.
A causalidade microscópica, por seu turno, parece consistir em certas restrições impostas por um electrão, nas posições ou estados possíveis de outros electrões, e na transferência de energia por electrões que adquirem ou perdem energia cinética.
Deste modo, a transferência redistributiva de energia parece sugerir uma segunda espécie de ocupação do espaço, em que as dimensões dos objectos são substituídas pelos seus quanta de energia. «Duas coisas, tendo igual energia, não existem no mesmo lugar ao mesmo tempo.»
O conflito de energias entre dois objectos resolve-se num equilíbrio médio estacionário só modificável por um excedente de energia que nenhum deles dispõe. Quando o movimento ocorre, em conformidade com a segunda lei da termodinâmica, a energia total é diferentemente distribuída, mas é a mesma quantidade total da situação anterior ao início do movimento.
Mas, poderemos sempre questionar: como pode um qualquer conceito indicar algo sobre a natureza da realidade objectiva? Como pode dar-se que o nosso pensamento seja objectivamente válido?
[1] Op.cit., p. 42-43.
[2] O princípio de exclusão de Pauli e o princípio de interferência indicam que nenhuma energia é dissipada quando duas ondas electro-magnéticas com desfasamento de fase de 180º e igual amplitude se cruzam; mas, tal não sucede se as alterações do campo eléctrico, magnético e gravitacional forem do mesmo tipo. Cf., op.cit., p. 43.
lang=PT>e porque me resgato,
trespasso e aceno
ao ventoso caudal de silêncios
que transmutam o desejo
no imensurável arrepio da pele,
que teço a dedos,
escrevo, descrevo
em folhas de linho e lilases
contornos de coral, febre e fios dourados?
componho serenatas precisas,
harmonias que ateiam fogos
e incendeiam os beijos,
esvaziando-me
dos percursos inacessíveis do olhar.por A. em 12/28/2003
John Locke distingue os argumentos em demonstrativos e prováveis. Hume discorda porque, com tal dicotomia, o ser vivo morrer, ou o sol nascer cada dia, seriam afirmações tão só prováveis e não provadas. Assim, divide os argumentos em demonstrações, provas e probabilidades, significando por prova todo o argumento derivado da experiência que não suscita dúvida ou oposição.[1]
Como dissemos, Hume, e o seu século, não conceptualiza a existência objectiva do acaso mas compreende que a ignorância da causa real dos eventos influencia o entendimento na formação de juízos de probabilidade, consoante a frequência relativa das conjunções de eventos ocorridas no passado, e transferidas, nas proporções respectivas, para a antecipação probabilística do curso dos eventos futuros.
Contudo, o mundo, embora não seja determinista como acreditava Laplace, mas aberto como diz Popper , é percorrido por cadeias causais que formam uma rede; no meio das malhas de tal rede, há o caos; porém, é à ordem dentro do caos, que devemos a emergência do que entendemos por mundo, i.é., uma realidade compatível com a inteligibilidade nele viável.
Kenneth Craik, no seu luminoso ensaio The Nature of Explanation (1943)[2] insurge-se contra a injustificada substituição, operada por Born, do princípio do indeterminismo do estado inicial da matéria[3] pelo da incerteza, que se satisfaz com o procedimento de associar probabilidades aos eventos, negando qualquer base causal às ocorrências.
Ora, como nota Northrop, «a probabilidade é desprovida de significado se separada de um conjunto dado de condições específicas, ( ) A menos que as condições que definam as probabilidades se conservem no tempo, ou mais simplesmente, a menos que haja qualquer relação necessária na qual se possa confiar, até as teorias científicas serão impossíveis.»[4]
Toda a teoria das probabilidades é em última instância fundada em ideias de causalidade. Na ausência do pressuposto da causalidade, todo a noção de probabilidade perde significado bem como o dizer-se que algo é mais provável do que qualquer outra hipótese ou evento.
Embora a base da teoria das probabilidades seja totalmente empírica é um maneira sofisticada e cómoda de descrever como os eventos realmente ocorrem a questão está em saber se é legítimo quedarmo-nos por essa aptidão de cálculo sem asserir algo mais sobre a relação entre os eventos.
Há comummente confusão sobre o que é provável: conjunções de eventos são prováveis; eventos, não. Se os eventos não tivessem influência uns sobre os outros a probabilidade das suas conjunções seria o produto das probabilidades dos eventos singulares, e portanto, mais baixas que as probabilidades da sua ocorrência singular; «ora, de facto, o que se passa é o contrário; constatamos conjunções frequentes ou certas, cujos eventos-componentes raramente ou nunca ocorrem isolados.»[5]
As conjunções só se tornam prováveis se um evento definitivamente restringe os eventos possíveis que lhe sucedam, isto é, se influencia os eventos subsequentes. Se aplicarmos as probabilidades a eventos isolados, temos de admitir que uma qualquer sequência arbitrária de eventos é tão provável como qualquer outra. De qualquer número escasso e insignificativo de ocorrências conjuntas nada se pode concluir e a própria teoria das probabilidades é inaplicável aos pequenos números.
[1] Op. cit., David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, sec. VI, $46, p 59, n. (1).
[2] Vide Kenneth Craik, The Nature of Explanation, Cambridge University Press, 1967 [1943], capítulos 3 e 4, Relational and descriptive theories e On causality, pp 30-49, que seguiremos nesta argumentação.
[3] Diz Craik: o estado instantâneo do sistema é descrito por uma quantidade complexa Y a qual satisfaz uma equação diferencial, e por conseguinte varia no tempo de um modo completamente determinado pela sua forma no momento t = 0, de modo que a evolução (do sistema) é causada rigidamente. Como, porém, as variáveis com significação em termos físicos, é restrita à quantidade ½Y½2 e outras... que só parcialmente definem Y , segue-se que mesmo quando as quantidades sejam completamente determináveis no momento t = 0, o valor inicial da função-Y é necessariamente não completamente definível. Esta visão da questão é equivalente à asserção de que os eventos acontecem realmente de um modo estritamente causal, mas nós desconhecemos o seu estado inicial exacto., op.cit., pp 31-32.
[4] Northrop, F.S.C., 1931, Science and First Principles, p. 284, Cambridge. cf., Craik, op.cit., p. 33 (itálico nosso).
[5] K. Craik, op.cit., p 35.
No tempo de David Hume, o acaso ainda era apenas reconhecido como o estado do espírito que reflecte a nossa ignorância sobre a causa real de qualquer evento, sem que nenhuma espécie de crença ou opinião se forme no espírito para a compreensão das suas causas.
Só um século mais tarde, Auguste Cournot, por volta de 1840, demonstrou que duas séries causais, cruzando-se, podem originar um resultado aleatório, isto é não-necessário. E, no nosso tempo, o próprio Stephen Hawking especula que, após o big bang, as constantes físicas do universo poderiam ter-se fixado noutros valores, e dessa explosão inicial poderia ter resultado nada. Assim, a própria realidade poderá averar-se ser um resultado aleatório, derivado de várias séries causais, isto é o devir irreversível de nenhuma conexão necessária.
De qualquer modo, no espaço-tempo da contemporaneidade do homem, há uma ordem causal do mundo; e mesmo que o caos indeterminístico, em que a ordem precariamente emerge, anuncie o retorno temível da desordem, nós somos testemunhas de que, por um tempo o nosso tempo , o mundo é atravessado por cadeias causais reais, que se cruzam com certa frequência, podendo gerar resultados aleatórios, mas que o determinam, parcialmente, em regularidades condicionais previsíveis, das quais procuramos retirar todo o ensinamento proveitoso à nossa própria sobrevivência como espécie.
Assim, a admirável aptidão de todos os seres viventes para captar as regularidades do seu próprio habitat é o resultado, e a condição, da sua própria sobrevivência na natureza que os contêm e constitui.[1]
Uma ordem causal do mundo e uma espécie de harmonia pré-estabelecida são premissas de inteligibilidade na filosofia de David Hume. Entenda-se, porém, habilmente, tal harmonia; não é propriamente pré-estabelecida, à maneira de Leibniz; mas, o resultado da economia da natureza na exclusão de conjunções vitais inviáveis.
O hábito é, assim, a descoberta de regularidades da natureza. O costume ou hábito é um princípio de racionalidade quando se trata de experimentos repetidos, de conjunções de percepções repetidas. Porém, sempre que experimentamos uma conjunção e não sentimos qualquer conexão necessária entre os eventos, nós estamos a fazer uma conjectura de acaso entre eles. Isso sucede também de facto, quando nem sequer nos surpreende a ocorrência da conjunção.
Podemos assim distinguir:
casualidade
Conjecturas de
causalidade
Quando fazemos uma inferência causal estamos a afastar uma suposição de acaso. Toda a repetição aponta para uma causação. Porém, Hume não trata da indução geral, mas só da inferência causal. Mais repetições não dão mais força, acreditava Russell; mas há um certo número de repetições que conduzem as espécies vivas mais inteligentes a mudar de uma hipótese de casualidade a uma convicção de causalidade.
Há um sentido inato de similaridade em todas as espécies animais. Dizia Quine, as criaturas que não acertam no número de repetições suficiente para mudar de uma hipótese de casualidade para uma convicção de causalidade têm a tendência infeliz, mas louvável, de morrer sem deixar descendência. E, de facto, o mundo é regulado por causas; ser sagaz é ser sensível à repetição.
O cepticismo moderado de Hume é em relação ao conhecimento, não à natureza ou mundo exterior. Quando temos uma predição e decorre o contrário, então a teoria está errada.[2] Para Hume, como para Popper, todo o saber é conjectural: assenta em hipóteses explicativas da realidade. Não há cepticismo indutivo em Hume: todas as ideias causais derivam de inferências causais, como acima expusemos.
A aprendizagem, o conhecimento, depende das inferência causais: «Um homem sagaz proporciona a sua crença à evidência». Todos, os sábios e os menos dotados, fazem inferências causais em razão do costume ou hábito. A racionalidade é uma crença justificada. Há uma proporção directa entre a crença e a evidência. A racionalidade depende da proporção, além da repetição; é um sentido inato entre as proporções e a ordem causal do mundo; uma harmonia estabelecida entre os seres viventes e o mundo em que emergem e de que dependem.
[1] Maria Gabriela Llansol tem um belíssimo texto sobre este tema: «A teoria da evolução das espécies, selecção por adaptação, revela, na sua contrapartida, um enunciado radical. Se cada espécie se adapta às circunstâncias do meio, cada espécie representa uma leitura das virtualidades desse meio. Cada espécie é uma leitura. A viabilidade de cada espécie é sobrevivência específica porque representa, de facto, uma descrição específica do real. Tantas quantas as espécies. Cada uma delas é, se bem entendo, uma história consistente do meio terrestre. Há, desta Terra, infinitas descrições possíveis... desde que escritas. Mais, dentro de cada espécie, há várias leituras. Tantas quantos os desvios evolutivos.», in Maria Gabriela Llansol, Parasceve, Relógio dÁgua, 2001, p 37.
[2] Pelo modus tollens de, p e pàq, se ~q, então ~p. deduz-se que, se p v ~q, então ~(pàq).
Já vimos que ao considerar o movimento comunicado de uma bola a outra, não encontramos nada mais do que
Mas, para lá destas circunstâncias, é comummente suposto que existe uma conexão necessária entre a causa e o efeito, e que a causa possui qualquer coisa, a que chamamos poder, força ou energia que parece acarretar ou implicar o efeito.
A questão é, conforme o método humeano[1] que ideia associamos a estes termos? Se todas as nossas ideias ou pensamentos derivam das nossas impressões, «esse poder deve descobrir-se ele próprio aos nossos sentidos ou ao nosso sentimento interior.»
Ora, ao observarmos a operação das causas, nos objectos externos à nossa volta, descobrimos apenas que os objectos se apresentam aos nossos sentidos numa conjunção constante, a um evento seguindo-se realmente outro.
Também à nossa mente não acorre qualquer sentimento ou impressão interna que sugira a ideia de poder ou conexão necessária entre os eventos que se conjugam. Se tal sucedesse, mesmo sem experiência, conseguiríamos prever o efeito de cada causa, por simples força do pensamento e do raciocínio.
Nada existe nas qualidades sensíveis da matéria que nos forneça uma base para imaginar, em qualquer objecto ou evento, o seu poder de produzir algum efeito específico que lhe suceda. Um evento sucede a outro mas não observamos entre eles qualquer vínculo. Vêmo-los conjuntos, mas não conexos. Será, então, a ideia de conexão ou poder, uma mera palavra desprovida de significado?
Sobre esta interrogação, a explicação de David Hume retoma a acção do hábito ou costume como a causa que origina a nossa impressão interna da conexão necessária.
Uma vez que nada existe de diferente, na ocorrência de um número dado de casos similares de conjunção de eventos, relativamente à ocorrência singular de um só caso, segue-se que o único factor que os diferencia é, justamente, a repetição de ocorrências, a qual origina na mente o sentimento ou impressão de que há um poder ou conexão necessária que liga a sequência dos eventos, habituada que fica a mente a constatar a transição de um objecto para o seu concomitante usual.
Diz Hume: na primeira vez que o sujeito primevo «viu a comunicação do movimento por impulso, como no choque das duas bolas de bilhar, não podia afirmar que que aquele evento estava conexo («connected»), mas apenas que estava associado («conjoined») ao outro.»[2]
Quanto a nós, sem menor admiração pela sagacidade humeana da descoberta desse princípio da natureza humana Hábito ou Costume, como ele próprio o designou sem o qual nunca teríamos a aptidão de apreender a realidade como ela é, e as regularidades a que está sujeita, quer-nos parecer salvo mais objectiva metafísica que as conjunções de eventos que no universo ocorrem, acontecem quer as conheçamos quer não, haja ou não uma qualquer classe de seres que os apreenda, ou no mínimo, aqueles que nós apreendemos, em dado periodo do devir do universo, ocorreram, e em nada dependeram de nós, ou da nossa aptidão de os captar, para terem obedecido aos princípios a que estarão condicionados, segundo exibe a regularidade das conjunções em que emergem para quem possa coexistir nesse devir e os apreenda.
Deste modo, inclinamo-nos a reconhecer, nos próprios fenómenos do universo, um real constrangimento segundo leis ou princípios que impedem ou bloqueiam embora precária e temporáriamente um curso entrópico de dissipação, na mais pura casualidade caótica.
[1] Qualquer ideia deve ter uma ancoragem empírica. Perante as ideias, em especial as abstractas, podemos sempre indagar do seu significado, interrogando: de que impressão deriva essa suposta ideia? («from what impression is that supposed idea derived?»), op. cit., An Enquiry concerning Human Understanding, sec II, Of the Origin of Ideas, § 17, p 22.
[2] Op. cit., David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, trad. Artur Morão, sec. VII, Parte II, $59, p 76. (itálicos nossos)
«Quando vejo uma bola de bilhar mover-se em direcção a outra, a minha mente é imediatamente levada pelo hábito ao efeito usual, e antecipa a minha visão ao CONCEBER a segunda bola em movimento.»11
Mas, isto é tudo? Não. Eu não apenas concebo como também ACREDITO que a segunda bola se moverá. «O que é então esta crença? E em que difere ela da simples concepção da coisa? Eis aqui uma nova questão impensada pelos filósofos», diz Hume.[1]
Vimos acima que as explicações que se baseiam na razão derivam desta conceber as respectivas proposições demonstrativas de tal modo que o espírito se torna sensível a que é impossível conceber qualquer coisa que lhe seja contrária. O que é demonstrativamente falso implica a contradição; e o que acarreta contradição não pode conceber-se.
Mas, com respeito a qualquer matéria de facto, por muito forte que seja a prova derivada da experiência, o espírito pode sempre conceber o contrário, embora nem sempre possa acreditar nisso. A crença, portanto, denota uma diferença entre a concepção à qual o espírito dá o seu assentimento e àquela a que o recusa.
Para dar a explicação disto, Hume raciocina que só há duas hipóteses, mutuamente exclusivas:
A primeira hipótese é falsa porque :
em primeiro lugar, nenhuma ideia daquele género pode produzir-se. Quando a mente concebe um objecto, concebe-o em todas as suas partes: tal como pode existir, embora não acredite que exista. Crer nele, não lhe descobriria novas qualidades. Podemos figurar o objecto inteiro na imaginação sem nele acreditar: é o próprio objecto concebido tal como pode existir; e quando nele acreditamos, não podemos fazer nada mais;
em segundo lugar, a mente tem a faculdade de ligar e unir todas as ideias, que não envolvam contradição; e portanto se a crença consistisse nalguma ideia, que por adição à simples concepção, forçasse o assentimento, então estaria no poder do homem, mediante tal adição, acreditar no que quer que fosse, entre o que pudesse conceber, o que é absurdo.
Dado que, portanto, a crença implica a concepção, e contudo é algo mais; e dado que não acrescenta nenhuma ideia nova à concepção; resta a segunda hipótese: a crença é «uma MANEIRA diferente de conceber um objecto; algo que é distinto no sentimento, e não depende da nossa vontade, como o fazem todas as nossas ideias.»[2]
A mente prossegue Hume «move-se, pelo hábito, do objecto visível de uma bola a deslocar-se contra outra, para o efeito usual do movimento da segunda bola. Não apenas concebe esse movimento, como sente, nessa concepção, qualquer coisa diferente de uma mera fantasia da imaginação. A presença deste objecto visível, e a conjunção constante daquele efeito particular, torna a ideia diferente à sensibilidade daquelas ideias frouxas, que ocorrem à mente sem quaisquer preliminares.»[3]
Não se trata, portanto, de um mero fenómeno de associação, não necessitarista. Em Hume, a associação não tem papel cognitivo; é uma mera força suave, que em geral prevalece. A conjunção causa-efeito ocorre mesmo:
conjunção frequente
costume ou hábito
A experiência de conjunções passadas de impressões conduz a uma crença causal. Há o primeiro sistema de realidades, baseado em impressões, e um segundo sistema, por transferência de vivacidade, o das ideias, como cópias das impressões. A crença causal é uma concepção mais forte de uma ideia.
Para explicar esta MANEIRA ou sentimento, em palavras, diz Hume, «podemos chamar-lhe uma concepção mais forte, mais vívida, mais animada, mais firme, ou uma concepção mais intensa. Seja qual for o nome com que designemos este sentimento, que constitui a crença, é evidente que ela tem um efeito mais imperioso sobre a mente do que a ficção ou a mera concepção.»[4]
Somos determinados pelo COSTUME sómente a supor o futuro conformável ao passado.
«Quando vejo uma bola de bilhar mover-se em direcção a outra, a minha mente é imediatamente levada pelo HÁBITO ao efeito usual, e antecipa a minha visão ao conceber a segunda bola em movimento.»[1]
Nada há nestes objectos, considerados em abstracto, e de modo independente da experiência, que nos induza a formar uma tal conclusão: e até depois de ter tido a experiência de muitos efeitos repetidos deste género, não há nenhum argumento que nos determine a supor que o efeito será conformável à experiência passada. Só o costume determina a mente, em todas as instâncias, a supor o futuro conformável com o passado. A inferência causal deriva do hábito ou costume.
Os poderes, pelos quais os corpos operam, são inteiramente desconhecidos. Apercebemo-nos somente das suas qualidades sensíveis: que razão temos nós para pensar que os mesmos poderes se conjugarão sempre com as mesmas qualidades sensíveis?
A associação de ideias é um fenómeno mental em que tendo o sujeito uma ideia presente, segue-se-lhe outra por semelhança, por contiguidade ou por causação. A associação de ideias é uma força suave que, em geral, prevalece. Há liberdade de imaginação, mas não de entendimento porque, neste, fica-se escravo da experiência, ao passo que a associação é uma gentle force.
Mas, será que o saber, para Hume, se reduz a um mero associacionismo de psicologia cognitiva? Iremos ver que não. A inferência causal resulta do hábito ou costume e não de qualquer mecanismo de associação. Não há associacionismo na inferência causal. As associações por semelhança e por contiguidade (chão / parede) originam-se na observação. Mas, a associação por causação que gera a inferência causal não resulta da observação, como mostraremos.
O hábito ou costume é uma disposição inata da natureza humana que consiste na propensão da sensibilidade a impressionar-se com a repetição de conjunções. É uma disposição para se deixar afectar pela repetição de formas no tempo ou por uma impressão constante no tempo. Mas a possibilidade do hábito, em si, não depende do tempo. Interessa o número de experiências, mas não o tempo que passe.
[1] An Abstract of a Treatise, op. cit., p 652. (Maiúsculas nossas)
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